Honrados e incumpridores
Há uma contradição entre a
frase tantas vezes repetida de que “somos honrados, pagamos as nossas dívidas”
e o valor da dívida pública, que em 2014 deverá ultrapassar os 130%. Trata-se
apenas de mais um exemplo de como não é possível conciliar uma leitura da crise
assente em critérios morais e uma resposta que tem de assentar em algum tipo de
racionalidade, desde logo económica. Podemos repetir ad nauseam o discurso da culpa e enfatizarmos os compromissos de
honra mas, a persistirmos assim, estamos a caminhar para um suicídio económico.
A tensão entre racionalidade
e culpa não surgiu apenas com o pós-2008.
Aliás, a dívida como questão moral é um tema milenar – não por acaso,
historicamente o crédito precedeu mesmo a cunhagem de moeda. É este o tema de
um livro com um título irónico e certeiro, “Dívida: os primeiros 5.000 anos”,
do antropólogo da economia David Graeber.
A confusão entre dívida e
pecado é uma marca com lastro. Não apenas porque, em muitas traduções da
liturgia cristã, dívida e pecado são termos usados indistintamente, ou porque
em alemão schuld significa culpa e
dívida, mas também porque, ao longo de séculos, a dívida foi tratada
exclusivamente como questão penal. A este propósito, Robert Kuttner, num artigo
na New York Review of Books, chama a atenção para o facto de só recentemente a
racionalidade económica ter passado a estar presente na forma como se lida com
a dívida. Até ao início do século XVIII, um devedor que incumpria era preso.
Mas, quando no Reino Unido, em 1706, o incumprimento deixou de ter como
consequência a pena de prisão, esta mudança não decorreu de nenhum surto de
compaixão mas apenas de pura racionalidade económica. Com grande parte dos
mercadores e comerciantes presos, e portanto incapazes de pagar as dívidas, a
economia estava a colapsar.
Não é, contudo, necessário
recuar tanto no tempo para a racionalidade económica ter prevalecido. Como é
sabido, a Alemanha no pós-II Guerra beneficiou de um colossal perdão de dívida,
que baixou de 675% do PIB, em 1939, para 12% no início da década de 50. Sem
este perdão, teria repetido a catástrofe política do pós-I Grande Guerra. E, a
este propósito, talvez seja preferível não reabrir a questão moral e da culpa.
Mas, além da contradição
insanável entre moral e racionalidade, o tema da dívida tende a ocultar também
uma questão de poder – desde logo, entre devedores e credores, que está
presente em todos os perdões.
Desde sempre, os perdões de
dívida foram seletivos, favorecendo uns e perpetuando a situação frágil de
outros. Da mesma forma que os grandes comerciantes eram perdoados, ao mesmo
tempo que os pequenos eram encarcerados, também hoje assistimos a um tratamento
desigual entre credores que veem a sua situação salvaguardada enquanto outros
ficam amarrados a dívidas impagáveis.
Uma história com 5.000 anos
que tem claras semelhanças com a situação em que Portugal se encontra hoje.
publicado no Expresso de 1 de Junho
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