domingo, junho 09, 2013

Honrados e incumpridores


Há uma contradição entre a frase tantas vezes repetida de que “somos honrados, pagamos as nossas dívidas” e o valor da dívida pública, que em 2014 deverá ultrapassar os 130%. Trata-se apenas de mais um exemplo de como não é possível conciliar uma leitura da crise assente em critérios morais e uma resposta que tem de assentar em algum tipo de racionalidade, desde logo económica. Podemos repetir ad nauseam o discurso da culpa e enfatizarmos os compromissos de honra mas, a persistirmos assim, estamos a caminhar para um suicídio económico.
A tensão entre racionalidade e culpa não surgiu apenas com o pós-2008.  Aliás, a dívida como questão moral é um tema milenar – não por acaso, historicamente o crédito precedeu mesmo a cunhagem de moeda. É este o tema de um livro com um título irónico e certeiro, “Dívida: os primeiros 5.000 anos”, do antropólogo da economia David Graeber.
A confusão entre dívida e pecado é uma marca com lastro. Não apenas porque, em muitas traduções da liturgia cristã, dívida e pecado são termos usados indistintamente, ou porque em alemão schuld significa culpa e dívida, mas também porque, ao longo de séculos, a dívida foi tratada exclusivamente como questão penal. A este propósito, Robert Kuttner, num artigo na New York Review of Books, chama a atenção para o facto de só recentemente a racionalidade económica ter passado a estar presente na forma como se lida com a dívida. Até ao início do século XVIII, um devedor que incumpria era preso. Mas, quando no Reino Unido, em 1706, o incumprimento deixou de ter como consequência a pena de prisão, esta mudança não decorreu de nenhum surto de compaixão mas apenas de pura racionalidade económica. Com grande parte dos mercadores e comerciantes presos, e portanto incapazes de pagar as dívidas, a economia estava a colapsar.
Não é, contudo, necessário recuar tanto no tempo para a racionalidade económica ter prevalecido. Como é sabido, a Alemanha no pós-II Guerra beneficiou de um colossal perdão de dívida, que baixou de 675% do PIB, em 1939, para 12% no início da década de 50. Sem este perdão, teria repetido a catástrofe política do pós-I Grande Guerra. E, a este propósito, talvez seja preferível não reabrir a questão moral e da culpa.
Mas, além da contradição insanável entre moral e racionalidade, o tema da dívida tende a ocultar também uma questão de poder – desde logo, entre devedores e credores, que está presente em todos os perdões.
Desde sempre, os perdões de dívida foram seletivos, favorecendo uns e perpetuando a situação frágil de outros. Da mesma forma que os grandes comerciantes eram perdoados, ao mesmo tempo que os pequenos eram encarcerados, também hoje assistimos a um tratamento desigual entre credores que veem a sua situação salvaguardada enquanto outros ficam amarrados a dívidas impagáveis.
Uma história com 5.000 anos que tem claras semelhanças com a situação em que Portugal se encontra hoje.
 publicado no Expresso de 1 de Junho