Uma tenaz narrativa
Há
boas razões para preocupações com o espectro de crise política que paira. Não
tanto por, como é sugerido pelo Governo – no que não passa de um álibi para a
sua própria incapacidade –, poder precipitar um segundo resgate que, ainda que
com outro nome, é inevitável, mas por o debate político mostrar que estamos
presos, para utilizar um modismo, entre duas narrativas desligadas da realidade
da crise que enfrentamos e que, por isso, não oferecem soluções viáveis.
Neste
sentido, o debate da moção de censura foi dramático, no essencial, pelo seu
efeito de revelação. Enquanto a maioria, pela voz de Vítor Gaspar, assenta a
sua estratégia numa leitura das razões por que Portugal foi resgatado que
ignora aspectos determinantes; o PS, por se ter autoinibido de falar do
passado, é, hoje, incapaz de se demarcar da interpretação da crise feita pelo
Governo, logo de oferecer um caminho alternativo.
Não
por acaso, durante o debate, as intervenções mais programáticas ignoraram as
condições da nossa participação no euro e a insustentabilidade dos níveis atuais
de endividamento. Um discurso político que secundariza estas dimensões não tem,
literalmente, futuro histórico.
Gaspar
expôs com particular clareza o que move a sua estratégia. Há dois anos,
Portugal precisou de ser resgatado por acumular um conjunto de défices
estruturais (identificados por Olivier Blanchard num conhecido artigo de 2006),
aos quais os Governos não responderam desde a adesão ao euro (a tese da “década
perdida”), e que se tornaram particularmente visíveis quando em 2009 foi
adotada uma estratégia orçamental “despesista”. No fundo, a crise foi virtuosa,
pois, ao expor as nossas debilidades, criou uma oportunidade única para as
resolver.
Este
argumento tem vários problemas. À cabeça, o facto da estratégia revolucionária em
curso estar a ser um descalabro económico, orçamental e também da dívida. Não
menos relevante, ignora os constrangimentos objectivos que a moeda única
colocou à economia portuguesa – a razão para os crescimentos medíocres desde a
adesão à UEM – e, particularmente assustador, passa ao lado da crise da dívida
soberana e, inclusivamente, da leitura que Blanchard, agora economista-chefe do
FMI, hoje faz.
Que
o Governo ensaie este discurso como tentativa espúria de ocultar os seus
falhanços não surpreende. O que surpreende é a timidez do PS perante esta
narrativa: não contraria a tese da “década perdida”, incorpora o argumento do
despesismo – que, aliás, não está refletido no défice de 2009, causado por um
desvio na receita – e abdica de fazer uma reflexão retrospectiva em torno das
armadilhas da moeda única.
Estamos
perante um verdadeiro pecado original: o PS ou tem algum rasgo estratégico ou não
será capaz de articular uma alternativa política com futuro. Por mais medidas
importantes que apresente (v.g., reembolso dos lucros do BCE com a compra de
dívida soberana), se não romper com esta tenaz narrativa, estará condenado a ter
como programa, num contexto radicalmente diferente do de 2005, uma versão light do choque tecnológico.
publicado no Expresso de 6 de Abril
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