O novo mundo do protesto
Em
democracia, as grandes manifestações tendiam a ser organizadas com propósitos
claros. Se, por um lado, serviam para expressar o descontentamento social, por
outro, eram momentos privilegiados para promover uma nova articulação de
interesses que, sendo organizada politicamente, produzia mudança. Não por
acaso, as manifestações encontravam intérpretes orgânicos – partidos,
sindicatos ou outros movimentos sociais – que, uma vez ultrapassado o momento
de contestação de rua, mantinham os factores de protesto na agenda pública, ao
mesmo tempo que se batiam pela sua transformação em políticas concretas,
conferindo sentido e eficácia aos protestos.
Se
o modo verbal que utilizo é o passado é porque me parece que as grandes
manifestações de hoje estão já distantes deste padrão. A manifestação que
decorrerá em todo o país, tal como a do passado 15 de Setembro, e antes dessa,
as grandes manifestações contra o Governo Sócrates, é bem distinta quer das
manifestações populares do passado, quer daquelas que, entre nós, a CGTP
continua a organizar.
Há
naturalmente uma função social que continua a ser desempenhada. Quando as
pessoas se manifestam, canalizam o descontentamento e, ao fazê-lo, exorcizam o
mal-estar que pressentem individualmente e que encontra eco através da comunhão
com milhares de outros manifestantes. Para mais, considerando que a onda de protestos
recentes – por exemplo o “grandolar” – encontra acolhimento mesmo entre aqueles
que não participam ativamente, as manifestações, por si só, desempenham um
papel relevante: consolidam laços de pertença a uma comunidade, que é por
definição política.
Contudo,
há um conjunto de ilusões associadas a estas novas formas de participação.
A
primeira das quais é a ilusão criada pelas redes sociais. O facebook, os
blogues e o twitter potenciam formas de expressão política ambicionadas há
séculos – não intermediadas, diretas e individualizadas. Mas se estas formas de
participação podem ser muito expressivas, não são, no entanto, capazes de
funcionar como válvulas de escape para o descontentamento. Pelo contrário, as
redes sociais acabam por funcionar como repositórios de tensões e
ressentimentos, em lugar de promoverem a sua superação.
Mas,
talvez, a maior das ilusões se prenda com o efeito das novas manifestações.
Seja nas redes sociais ou, hoje, nas ruas do país, a força dos protestos não se
traduz em mudança política efetiva. Não apenas porque há contradições
politicamente insuperáveis entre quem se manifesta, mas, no essencial, porque
não há (ainda) quem interprete os protestos e quem os traduza num programa
político alternativo.
Não
nego a importância do protesto baseado na recusa do que existe, mas, sem alguém
que o represente organicamente, a sua eficácia é reduzida. Ora o problema é
precisamente esse: as formas tradicionais de representação de interesses já não
são vistas como representativas, mas ainda não foram encontradas novas formas
capazes de organizar a mudança. O que só consolida a natureza radicalmente nova
da crise que enfrentamos.
publicado no Expresso de 2 de Março
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