Porque é que não te calas?
Há uns tempos, Vítor Gaspar deixou de
ser apresentado como um técnico muito capaz para passar a ser um ministro
incompetente. Do mesmo modo, esta semana, quando o Presidente do Eurogrupo, um
holandês de nome impronunciável, Dijsselbloem,
disse que a solução final para o Chipre podia ser aplicada em resgates de
sistemas bancários de outros países, muitos se apressaram a classificar a
declaração como um dislate de alguém com poucas competências políticas.
Infelizmente, o problema de Gaspar, bem como o de Dijsselbloem, não é de
incompetência técnica ou comunicacional. Antes assim fosse. A questão é
política e ambos são, aliás, muito competentes na concretização da estratégia
em que estão empenhados.
No
essencial, esta estratégia assenta numa leitura da natureza da crise que procura
iludir os interesses conflituais em jogo. A questão é de poder, logo política,
e é-nos apresentada como sendo moral.
Quando
a luta na Europa aquece, o tema da culpa reemerge com particular intensidade como
mecanismo de ocultação das relações de poder. Não por acaso, o ministro alemão
Schauble, em mais uma declaração reveladora, aproveitou por explicar as
críticas à Alemanha como sendo feitas por “maus alunos”, os preguiçosos do Sul,
invejosos dos “bons alunos”, os trabalhadores incansáveis do Norte. Ora esta
visão, ao mesmo tempo pueril e eficaz, serve para disfarçar um conjunto de
respostas à crise que visa servir os interesses dos credores (não nos iludamos,
é essa a medida da eficácia para Vítor Gaspar) e reproduzir uma estrutura de
poder na qual há beneficiários objectivos (à cabeça a Alemanha) e também
perdedores objectivos (os países da periferia).
O
primeiro acto da tragédia cipriota, que apenas agora se iniciou, encerra também
uma questão de poder, com risco de contágio. No meio da insanidade que se
apoderou do Eurogrupo, é possível discernir um conjunto de objectivos. É disso
exemplo a arrogância de impor uma transformação do sistema económico do Chipre.
O que o Eurogrupo em última análise diz é que Frankfurt, Londres e Paris podem
ter centros financeiros fortes, mas Nicósia, Luxemburgo e Valletta não.
Enquanto
a economia de Chipre é desmantelada, obrigando o país a reconverter-se
economicamente, num contexto adverso, quem sabe regressando a uma base
agrícola, com o decretado fim da circulação de capitais, de facto, já temos
duas zonas euro. Resta saber quantos países se terão de juntar à união
monetária com o Chipre.
Não
admira que a Alemanha defenda os seus interesses, o que espanta é que os países
da periferia interiorizem a culpa moral pela crise, que busquem expiá-la,
aceitando sistematicamente o empobrecimento como solução, e que nas reuniões
europeias ninguém se insurja contra o que é dito e feito. O que surpreende nas
últimas semanas não são tanto as decisões tomadas, é a atitude colaboracionista
de quem é objectivamente prejudicado. Não admira que Schauble ou Dijsselbloem
digam o que pensam. O que choca é que ministros do Governo português presentes nestas
reuniões não tenham a coragem patriótica para dizer: “porque é que não te
calas?”
publicado no Expresso de 29 de Março
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