A maioria silenciosa
Numa
cena de “Homens Simples” de Hal Hartley, Martin Donovan estaciona a carrinha e,
num ambiente bucólico, grita exasperado: “não aguento o silêncio”. Depois, irrompem
as guitarras distorcidas de Kool Thing dos Sonic Youth e logo vemos os
protagonistas a ensaiarem uma coreografia em conjunto que, enquanto devolve a
memória de “Band à Part”, contrasta com a quietude que causava desconforto ao
protagonista do filme. Na ausência de outra possibilidade, o baixo materialismo
dos acordes em distorção surgia como resposta a um silêncio e a um vazio
insuportáveis.
Tem
sido notado que o elemento mais surpreendente da manifestação do passado sábado
foi o seu lado quase lúgubre. Durante longos momentos, enquanto desciam a
Avenida da Liberdade em Lisboa, milhares de pessoas caminhavam num passo
pesaroso, sem o acompanhamento das palavras de ordem que tendem a surgir nestes
momentos. O silêncio cinzento parecia ser o espelho exato do sentimento
político da manifestação. É dito com frequência que a política tem horror ao
vazio. Pode bem ser verdade, mas há momentos em que de facto o vazio político
impera.
Há,
hoje, uma coligação ampla de rejeição à estratégia política que a Europa tem
desenhado para enfrentar a crise e que o Governo português cumpre com desvelado
empenho. Contudo, não se vislumbra uma alternativa política que represente
maioritariamente o descontentamento e que tenha capacidade de inverter este
rumo. De certa forma, o silêncio dos manifestantes é a expressão política do vazio.
Se houvesse um horizonte de esperança, corporizado por uma alternativa
política, dificilmente teríamos tido manifestações tão desalentadas.
Ainda
assim, podíamos esperar uma revolta com algum tipo de expressão mais violenta,
mesmo que apenas verbal. De algum modo, a rejeição profunda do estado de coisas
combinada com ausência de alternativa visível podia encontrar escape numa
espécie de baixo materialismo, um ruído vindo de baixo, como as guitarras
distorcidas que se ouvem nos “Homens Simples”. Mas não, o mal-estar difuso, a
indignação grisalha, encontrou refúgio num comportamento anómico.
Talvez
esse seja um dos aspectos preocupantes da atual situação. Há demasiados sinais
do que Durkheim chamou de anomia. No “Suicídio”, para explicar causas não
individuais do suicídio, o sociólogo francês destacava o papel dos laços
comunitários como factores de integração individual, através de mecanismos de
solidariedade orgânica, que contrariavam a tendência para o suicídio como
resposta a acontecimentos negativos na vida de um indivíduo. Anomia
correspondia, precisamente, a condições nas quais se assistia a uma quebra dos
laços sociais entre um indivíduo e a sua comunidade.
Podemos
bem estar a viver o início de um longo período onde a inércia social e política
podem ganhar força. Faz sentido: estamos a assistir a uma mudança súbita da
nossa condição económica, acompanhada por uma descoincidência quer entre os
valores sociais e as aspirações individuais, quer entre as proposições
políticas e a existência quotidiana dos indivíduos.
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