segunda-feira, março 25, 2013

A maioria silenciosa


Numa cena de “Homens Simples” de Hal Hartley, Martin Donovan estaciona a carrinha e, num ambiente bucólico, grita exasperado: “não aguento o silêncio”. Depois, irrompem as guitarras distorcidas de Kool Thing dos Sonic Youth e logo vemos os protagonistas a ensaiarem uma coreografia em conjunto que, enquanto devolve a memória de “Band à Part”, contrasta com a quietude que causava desconforto ao protagonista do filme. Na ausência de outra possibilidade, o baixo materialismo dos acordes em distorção surgia como resposta a um silêncio e a um vazio insuportáveis.
Tem sido notado que o elemento mais surpreendente da manifestação do passado sábado foi o seu lado quase lúgubre. Durante longos momentos, enquanto desciam a Avenida da Liberdade em Lisboa, milhares de pessoas caminhavam num passo pesaroso, sem o acompanhamento das palavras de ordem que tendem a surgir nestes momentos. O silêncio cinzento parecia ser o espelho exato do sentimento político da manifestação. É dito com frequência que a política tem horror ao vazio. Pode bem ser verdade, mas há momentos em que de facto o vazio político impera.
Há, hoje, uma coligação ampla de rejeição à estratégia política que a Europa tem desenhado para enfrentar a crise e que o Governo português cumpre com desvelado empenho. Contudo, não se vislumbra uma alternativa política que represente maioritariamente o descontentamento e que tenha capacidade de inverter este rumo. De certa forma, o silêncio dos manifestantes é a expressão política do vazio. Se houvesse um horizonte de esperança, corporizado por uma alternativa política, dificilmente teríamos tido manifestações tão desalentadas.
Ainda assim, podíamos esperar uma revolta com algum tipo de expressão mais violenta, mesmo que apenas verbal. De algum modo, a rejeição profunda do estado de coisas combinada com ausência de alternativa visível podia encontrar escape numa espécie de baixo materialismo, um ruído vindo de baixo, como as guitarras distorcidas que se ouvem nos “Homens Simples”. Mas não, o mal-estar difuso, a indignação grisalha, encontrou refúgio num comportamento anómico.
Talvez esse seja um dos aspectos preocupantes da atual situação. Há demasiados sinais do que Durkheim chamou de anomia. No “Suicídio”, para explicar causas não individuais do suicídio, o sociólogo francês destacava o papel dos laços comunitários como factores de integração individual, através de mecanismos de solidariedade orgânica, que contrariavam a tendência para o suicídio como resposta a acontecimentos negativos na vida de um indivíduo. Anomia correspondia, precisamente, a condições nas quais se assistia a uma quebra dos laços sociais entre um indivíduo e a sua comunidade.
Podemos bem estar a viver o início de um longo período onde a inércia social e política podem ganhar força. Faz sentido: estamos a assistir a uma mudança súbita da nossa condição económica, acompanhada por uma descoincidência quer entre os valores sociais e as aspirações individuais, quer entre as proposições políticas e a existência quotidiana dos indivíduos.
 publicado no Expresso de 9 de Março