Um problema de memória
Se tivesse de escolher uma
debilidade das políticas públicas em Portugal, escolheria a instabilidade. Muda
o Governo e as políticas mudam e, pior, muda o ministro no mesmo Governo e as
políticas voltam a mudar. Esta inclinação para começar sempre de novo tem o
efeito desastroso de diminuir a eficácia das escolhas e partir do pressuposto
que, ao apagar-se a memória, a capacidade de afirmação política do novo
ministro aumenta.
Não é difícil encontrar exemplos desta
tendência nas mais variadas áreas. Mas este Governo, com a sua agenda de
ruturas radicais, é um paradigma vanguardista desta vontade indómita de deitar o
passado para o caixote de lixo. Um indicador avançado desta vocação é,
sintomaticamente, o próprio portal do Governo.
O
que deveria ser um sítio onde constaria a informação disponibilizada ao longo
dos tempos pelos vários Governos passou a ser uma galeria de fotos de ministros
(aliás disponíveis para download, não vá algum funcionário mais zeloso querer
ter o ministro como wallpaper) e comunicados de imprensa. No fundo, a única
coisa sobre a qual o Governo acha que tem de apresentar contas é a agenda
mediática. No passado, ainda que com bastantes insuficiências, podíamos
encontrar online documentos que enquadravam decisões, relatórios com avaliações
e as próprias apresentações dos membros do Governo. Hoje, não só não há
praticamente nenhuma informação relevante disponível, como aquela que existia
foi apagada.
Para
dar dois exemplos de busca de informação que fiz recentemente, era possível
aceder às várias apresentações públicas dos PEC e deixou de o ser – o que
impossibilita a comparação entre as intervenções de Teixeira dos Santos e Vítor
Gaspar, do mesmo modo que, enquanto foi extinto o programa “novas oportunidades”,
deixámos de conhecer as avaliações da iniciativa.
Os
exemplos em que o histórico dos sites foi apagado são infindáveis, no que está
longe de ser uma questão marginal. Conhecermos as decisões é um elemento
fundamental de transparência em relação ao passado mas, também, em relação ao
presente.
Este apagão no site do
Governo sugere, ainda, um outro problema, não menos irrelevante: uma confusão
entre o que é Estado e Governo. Uma coisa é o conjunto de decisões,
necessariamente transitórias, do Governo, outra, bem diferente, é a autonomia
do Estado e da administração pública, que deve ser preservada e cuja existência
vai para além dos ministros de cada momento. Curiosamente, este executivo, que
se apresentou como liberal, tem ido bem longe nesta confusão. Um exemplo
caricato disto são as novas receitas médicas, nas quais o logotipo do
Ministério da Saúde, presente desde há muito, foi substituído pela marca
“Governo de Portugal”.
Já aqui escrevi, citando
Ortega y Gasset, que o que distingue o homem dos outros animais é a memória. Se
insistimos em apagá-la, estamos a plagiar o orangotango. Ora um portal de um
Governo é um sítio tão bom como outro qualquer para este exercício de plágio.
publicado no Expresso de 4 de Maio
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