A encenação do fim
Este ano, contrariando uma
tendência dos últimos tempos, os jardins de São Bento e do Palácio de Belém
estiveram encerrados no 25 de Abril. O facto não teria particular relevância se
não ocorresse num contexto de fechamento crescente da classe política e quando
a crise de representação já há muito deixou de ser apenas um espectro a pairar
sobre o regime. No dia em que se celebra a democracia, os portões das
instituições fecham-se simbolicamente, por estarem em “manutenção”.
Os portões fechados são,
contudo, um episódio marginal de uma encenação do fim que vai decorrendo a um
ritmo imparável e que tem marcos bem mais estruturantes.
Há, a este propósito, um
indicador avançado, que se sobrepõe a todos os outros. Se tomarmos como indício
de consolidação das democracias a capacidade dos partidos do arco da
governabilidade para terem, em conjunto, 2/3 dos votos, aquilo a que assistimos
um pouco por toda a Europa do sul, numa tendência que chegará a Portugal, é a
um retrocesso do regime. A erosão eleitoral dos partidos do centro progride a
passos largos e é filha do declínio dos factores que, no passado, os tornaram
legítimos: o sucesso do projeto europeu e décadas de expansão do Estado social
e de melhoria das condições de vida.
Mas aquele que é, talvez, o
sinal mais perturbador é a incapacidade do sistema político para resolver
autonomamente os dilemas que enfrenta. A judicialização crescente de questões
políticas é disso exemplo. Com a sucessão de orçamentos que têm de ser
avaliados pelo Tribunal Constitucional e com o recurso aos tribunais comuns para
interpretar o sentido autêntico da lei da limitação dos mandatos autárquicos, temos
sinais de que esta tendência não só se tem intensificado, como pode bem ter-se
tornado irreversível. O que nos é sugerido é que as instituições eminentemente
políticas do regime exauriram as suas capacidades e transferem as suas responsabilidades
para outras esferas.
A este propósito, o discurso
do Presidente da República nas comemorações do 25 de Abril foi sintomático.
Deixemos de parte a forma contraproducente como, enquanto apelava ao consenso,
de facto, cristalizou divisões e fixemo-nos no modo como, no dia que se
celebrava a instauração da democracia, o Presidente não hesitou em despolitizar
radicalmente o leque de opções programáticas possíveis.
Até hoje, nunca tínhamos
tido um Presidente da nossa República a desvalorizar de forma tão veemente as
eleições, as escolhas políticas e o papel das divergências em democracia.
Podemos discordar das opções programáticas dos outros, mas não podemos, em caso
algum, condicionar a soberania popular conquistada há 39 anos. A mensagem foi
clara: as eleições não interessam, o que conta é o cumprimento do memorando; as
ideologias são perigosas, o que importa é o tratado orçamental. Que um
dirigente partidário, oportunisticamente, faça um discurso desta natureza, é
explicável. Que a mais alta figura do regime lhe dê peso institucional é um
prenúncio de que nos aproximamos do fim.
publicado no Expresso de 27 de Abril
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