segunda-feira, setembro 16, 2013

Anatomia de um cadáver


É tentador explicar os últimos dias da política portuguesa com um conjunto de comportamentos irracionais. Mas é um erro. Como é sabido, mesmo a loucura obedece a uma lógica interna. E, se estamos a ser varridos por mais uma vaga de loucura política, não é ainda assim difícil encontrar causas explicativas.
A justificação mais consistente encontra-se, paradoxalmente, na carta de demissão de Vítor Gaspar. Com particular sinceridade, o ex-ministro das Finanças anunciava a inevitabilidade do caos político que se seguiria. No fundo, era uma questão de tempo até chegarmos aqui. O que talvez seja surpreendente é o estrondo com que tudo aconteceu.
Para Gaspar, o falhanço deste Governo é resultado da estratégia orçamental e da ausência de liderança política. Assenta, por um lado, no reconhecimento do incumprimento, em 2012 e 2013, “dos limites do programa para o défice e para a dívida”, que “minou a (sua) credibilidade” e, por outro, numa falta de liderança que assegurasse “as condições internas de concretização do ajustamento”. Não por acaso, há uma palavra chave no texto, escrita aliás em itálico, atempadamente. O primeiro-ministro não foi capaz de garantir, em tempo, as condições políticas para fechar a 7ª avaliação e a ausência dessas condições inviabilizava a elaboração do orçamento de Estado para 2014 e o já acordado corte de 4 mil milhões, conclui Gaspar.
Neste duplo falhanço – político e orçamental – encontram-se as causas profundas da semana que vivemos e os constrangimentos para os próximos tempos.
Podemos naturalmente centrar-nos no ruído, na infantilidade política reinante ou até deixarmo-nos ficar perplexos com a indigência discursiva e a total ausência de sentido de Estado que caracteriza o ainda primeiro-ministro, mas a questão essencial é outra. Alguém no seu perfeito juízo pensa que um Governo que até aqui não foi capaz de consensualizar internamente os cortes com que se comprometeu ou, alternativamente, renegociar com a troika vai, depois desta semana, conseguir fazê-lo atempadamente?
A consequência imediata desta semana é que onde havia um Governo dividido, com pouca margem de manobra e incapaz de cumprir o próprio programa, passou a existir um cadáver político, que não serve nem sequer a si próprio. Talvez a metáfora mais exata para o Governo seja a das galinhas que, mesmo depois de verem a sua cabeça cortada, continuam a correr, sem sentido e sem direção.
Esta sucessão de eventos mostra bem como temos de ser devolvidos à razoabilidade e precisamos de tornar viável esta estratégia de ajustamento ou, preferencialmente, uma outra. Com o que resta do cadáver político que nos governa, deixou de ser possível cumprir o acordado com a troika na 7ª avaliação, mas também conceber uma estratégia alternativa. Se nenhum destes caminhos pode ser trilhado, qual a razão para prolongar o estertor e manter vivo artificialmente algo que já está, de facto, politicamente morto?
(disclaimer: este artigo foi escrito na sexta-feira às 11.30 da manhã. Pode bem ter sido ultrapassado por alterações nos factos)

publicado no Expresso de 22 de Junho