Anatomia de um cadáver
É tentador explicar os
últimos dias da política portuguesa com um conjunto de comportamentos
irracionais. Mas é um erro. Como é sabido, mesmo a loucura obedece a uma lógica
interna. E, se estamos a ser varridos por mais uma vaga de loucura política,
não é ainda assim difícil encontrar causas explicativas.
A justificação mais
consistente encontra-se, paradoxalmente, na carta de demissão de Vítor Gaspar.
Com particular sinceridade, o ex-ministro das Finanças anunciava a
inevitabilidade do caos político que se seguiria. No fundo, era uma questão de
tempo até chegarmos aqui. O que talvez seja surpreendente é o estrondo com que
tudo aconteceu.
Para Gaspar, o falhanço
deste Governo é resultado da estratégia orçamental e da ausência de liderança
política. Assenta, por um lado, no reconhecimento do incumprimento, em 2012 e
2013, “dos limites do programa para o défice e para a dívida”, que “minou a
(sua) credibilidade” e, por outro, numa falta de liderança que assegurasse “as
condições internas de concretização do ajustamento”. Não por acaso, há uma
palavra chave no texto, escrita aliás em itálico, atempadamente. O primeiro-ministro não foi capaz de garantir, em
tempo, as condições políticas para fechar a 7ª avaliação e a ausência dessas
condições inviabilizava a elaboração do orçamento de Estado para 2014 e o já
acordado corte de 4 mil milhões, conclui Gaspar.
Neste duplo falhanço –
político e orçamental – encontram-se as causas profundas da semana que vivemos
e os constrangimentos para os próximos tempos.
Podemos naturalmente
centrar-nos no ruído, na infantilidade política reinante ou até deixarmo-nos
ficar perplexos com a indigência discursiva e a total ausência de sentido de
Estado que caracteriza o ainda primeiro-ministro, mas a questão essencial é
outra. Alguém no seu perfeito juízo pensa que um Governo que até aqui não foi
capaz de consensualizar internamente os cortes com que se comprometeu ou,
alternativamente, renegociar com a troika vai, depois desta semana, conseguir
fazê-lo atempadamente?
A consequência imediata
desta semana é que onde havia um Governo dividido, com pouca margem de manobra
e incapaz de cumprir o próprio programa, passou a existir um cadáver político,
que não serve nem sequer a si próprio. Talvez a metáfora mais exata para o
Governo seja a das galinhas que, mesmo depois de verem a sua cabeça cortada,
continuam a correr, sem sentido e sem direção.
Esta sucessão de eventos
mostra bem como temos de ser devolvidos à razoabilidade e precisamos de tornar
viável esta estratégia de ajustamento ou, preferencialmente, uma outra. Com o
que resta do cadáver político que nos governa, deixou de ser possível cumprir o
acordado com a troika na 7ª avaliação, mas também conceber uma estratégia
alternativa. Se nenhum destes caminhos pode ser trilhado, qual a razão para
prolongar o estertor e manter vivo artificialmente algo que já está, de facto,
politicamente morto?
(disclaimer: este artigo foi
escrito na sexta-feira às 11.30 da manhã. Pode bem ter sido ultrapassado por
alterações nos factos)
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