segunda-feira, junho 17, 2013
sexta-feira, junho 14, 2013
domingo, junho 09, 2013
Honrados e incumpridores
Há uma contradição entre a
frase tantas vezes repetida de que “somos honrados, pagamos as nossas dívidas”
e o valor da dívida pública, que em 2014 deverá ultrapassar os 130%. Trata-se
apenas de mais um exemplo de como não é possível conciliar uma leitura da crise
assente em critérios morais e uma resposta que tem de assentar em algum tipo de
racionalidade, desde logo económica. Podemos repetir ad nauseam o discurso da culpa e enfatizarmos os compromissos de
honra mas, a persistirmos assim, estamos a caminhar para um suicídio económico.
A tensão entre racionalidade
e culpa não surgiu apenas com o pós-2008.
Aliás, a dívida como questão moral é um tema milenar – não por acaso,
historicamente o crédito precedeu mesmo a cunhagem de moeda. É este o tema de
um livro com um título irónico e certeiro, “Dívida: os primeiros 5.000 anos”,
do antropólogo da economia David Graeber.
A confusão entre dívida e
pecado é uma marca com lastro. Não apenas porque, em muitas traduções da
liturgia cristã, dívida e pecado são termos usados indistintamente, ou porque
em alemão schuld significa culpa e
dívida, mas também porque, ao longo de séculos, a dívida foi tratada
exclusivamente como questão penal. A este propósito, Robert Kuttner, num artigo
na New York Review of Books, chama a atenção para o facto de só recentemente a
racionalidade económica ter passado a estar presente na forma como se lida com
a dívida. Até ao início do século XVIII, um devedor que incumpria era preso.
Mas, quando no Reino Unido, em 1706, o incumprimento deixou de ter como
consequência a pena de prisão, esta mudança não decorreu de nenhum surto de
compaixão mas apenas de pura racionalidade económica. Com grande parte dos
mercadores e comerciantes presos, e portanto incapazes de pagar as dívidas, a
economia estava a colapsar.
Não é, contudo, necessário
recuar tanto no tempo para a racionalidade económica ter prevalecido. Como é
sabido, a Alemanha no pós-II Guerra beneficiou de um colossal perdão de dívida,
que baixou de 675% do PIB, em 1939, para 12% no início da década de 50. Sem
este perdão, teria repetido a catástrofe política do pós-I Grande Guerra. E, a
este propósito, talvez seja preferível não reabrir a questão moral e da culpa.
Mas, além da contradição
insanável entre moral e racionalidade, o tema da dívida tende a ocultar também
uma questão de poder – desde logo, entre devedores e credores, que está
presente em todos os perdões.
Desde sempre, os perdões de
dívida foram seletivos, favorecendo uns e perpetuando a situação frágil de
outros. Da mesma forma que os grandes comerciantes eram perdoados, ao mesmo
tempo que os pequenos eram encarcerados, também hoje assistimos a um tratamento
desigual entre credores que veem a sua situação salvaguardada enquanto outros
ficam amarrados a dívidas impagáveis.
Uma história com 5.000 anos
que tem claras semelhanças com a situação em que Portugal se encontra hoje.
publicado no Expresso de 1 de Junho
O que move o Presidente?
Cavaco Silva está numa
posição que não encontra paralelo nos anteriores Presidentes da República. Com
níveis de popularidade baixos, tem sido incapaz de funcionar como válvula de
escape do regime, acomodando institucionalmente a conflitualidade social; não
alargou a sua base de apoio e circunscreveu a sua margem de manobra,
patrocinando com gestos e palavras o atual Governo. Neste sentido, a reunião do
Conselho de Estado foi lida como mais um momento de respaldo do primeiro-ministro,
sendo possível distinguir dois tipos de interpretações do que esteve em causa.
Para uns, Cavaco Silva quer
evitar a todo o custo uma crise política. Com a queda do Governo, um cenário
que se encontra à distância de uma palavra mais crítica, o Presidente ficaria
“com o bebé nos braços” e antecipa os custos políticos pessoais que decorreriam
de uma crise de governabilidade de contornos imprevisíveis.
Para outros, o Presidente
vive em comunhão programática com o executivo e, pese embora algumas críticas no
passado, no fundo acredita na receita que está a ser aplicada, desde que
preservada a situação dos pensionistas. Sendo assim, o Conselho do Estado tinha
um propósito claro: criar condições alargadas para que, esteja quem estiver no
poder, o “programa cautelar” que se seguirá ao memorando de entendimento tenha
apoio.
Não digo que estas
explicações não sejam verdadeiras e que, em última análise, o Presidente
queira, custe o que custar, evitar uma crise. Mas, mesmo tendo em conta um
Conselho de Estado convocado com um tema que se aproxima do argumento de um
filme de ficção científica cuja ação decorre num futuro distante, é possível
que Cavaco Silva aja movido por outros factores.
Convenhamos que o exercício
que é exigido ao Presidente está longe de ser fácil. Para quem defende a
substituição deste Governo sem eleições, Cavaco Silva teria, ao mesmo tempo, de
encontrar um nome alternativo ao do primeiro-ministro que fosse aceite pelo PSD
(que teria de mudar de líder), manter Paulo Portas a bordo e, pelo caminho,
secundarizar o líder do maior partido da oposição, que, aliás, está à frente
nas sondagens. Para aqueles que defendem a realização de eleições, Cavaco Silva
teria de contribuir para a formação de uma nova maioria, com um quadro
parlamentar totalmente fragmentado.
Como bem referiu Jorge
Sampaio, o país encontra-se politicamente bloqueado, pelo que é evidente que,
mais cedo do que tarde, teremos um novo Governo, com o mesmo parlamento ou com
novas eleições. Mas é também possível que Cavaco Silva esteja apenas a tratar
de reforçar a sua posição perante uma crise. É verdade que é diferente remover
agora um primeiro-ministro incapaz ou remover, daqui a uns tempos, um
primeiro-ministro que foi apoiado de todas as formas possíveis pelo Presidente
da República e que, mesmo assim, se revelou incapaz. No fundo, Cavaco Silva
pode estar a fazer o que sempre fez eximiamente: reforçar a sua posição
pessoal. Com uma diferença, hoje fá-lo numa posição bem mais difícil, na qual
se colocou apenas por responsabilidade própria.
publicado no Expresso de 25 de Maio
A albanização dos pensionistas
Chega a ser enternecedora a forma como a
encenação de Paulo Portas em torno da TSU para os pensionistas serviu como
cortina de fumo para a mais brutal das medidas que o Governo se prepara para
perpetrar: a convergência retroativa das pensões da Caixa Geral de
Aposentações. Não deixa, aliás, de ser sintomático que tenhamos assistido a uma
mordidela coletiva do isco. Todas as críticas se centraram numa medida injusta
e que é, de facto, mais um “aumento brutal de impostos”, mas que agora é dada
como sendo “facultativa”, enquanto se secundarizava uma outra, que prevê cortes
bem mais significativos de rendimentos.
Talvez
a explicação esteja nas palavras, como sempre insólitas, de Passos Coelho
quando afirmou que as novas medidas não se aplicavam “à generalidade das
pessoas” (sic) e não se traduziriam
em “consequências diretas para os cidadãos”. Bem sei que a palavra do
primeiro-ministro não é para ser levada a sério - verbaliza o que lhe ocorre em
que cada momento, sem se preocupar com as repercussões daquilo que diz. Ainda
assim, é revelador que faça uma distinção objetiva entre “pessoas” e
pensionistas da CGA e que, dois anos passados, continue a não perceber que
cortes nos rendimentos de um conjunto de cidadãos produzem efeitos, afundando
ainda mais a economia – com “consequências diretas para os cidadãos”.
Vale
a pena recordar algumas evidências. A primeira é que, sendo verdade que a pensão
média da CGA é superior à do regime geral da segurança social (1300 e 500 euros),
há razões para que assim seja. Umas justificadas, outras não (a persistência de
diferenças na fórmula de cálculo para os novos pensionistas).
Não
é despiciendo sublinhar que estamos perante pensões contributivas, o que
significa que os benefícios resultam de descontos prévios e diferenciados.
Enquanto os salários de referência na CGA foram significativamente superiores
(estamos a falar de professores, médicos, magistrados e outras profissões
qualificadas e de trabalhadores de fundos de pensões entretanto integrados – é
o ex. da PT, CGD e CTT), também as suas carreiras contributivas foram mais
longas (30 anos na CGA e 24 no RGSS). Naturalmente que estes descontos têm de
se traduzir em pensões mais elevadas.
A menos que se queira
“albanizar” os rendimentos de todos os pensionistas, comprimindo-os e tratando
de igual forma quem teve carreiras contributivas longas (baseadas em salários
mais altos) e quem descontou pouco (sobre salários mais reduzidos), não se
percebe qual o objectivo desta diatribe contra os pensionistas.
Como se não bastassem todas estas
questões, na carta à troika, o
Governo assume que vai “poupar” 740 milhões de euros, em 2014, com um corte de
10%. Já o relatório do FMI referia que, para cortar 600 milhões, era necessário
fazer reduções de 20% nas pensões, de forma a isentar as mais baixas. No fundo,
o problema é sempre o mesmo: nunca se percebe se devemos temer mais a voragem
ideológica do Governo ou a sua incompetência.
Estado de ansiedade
“Um menu de medidas”. O que
se pensava ser mais uma expressão infeliz do primeiro-ministro revelou-se,
afinal, parte essencial do anúncio da última dose de austeridade. Bastaram 48
horas para, com a intervenção de Paulo Portas, percebermos que estávamos mesmo
perante um cardápio de propostas, prontas a ser degustadas e algumas delas
alegadamente descartáveis. Tudo com um propósito quase pueril: o Governo
apresentava medidas que iam para além do necessário e com isso ganhava margem
de manobra para, é-nos dito, negociar com a oposição, com os parceiros sociais
e com a Troika.
Deixemos de lado uma
evidência que salta aos olhos de todos. As medidas apresentadas tinham um
impacto superior, no essencial, porque o Governo foi incapaz de, uma vez mais,
chegar a um entendimento no Conselho de Ministros e prolongou na praça pública
o que deveria ter sido resolvido internamente. Mas, convenhamos, a incapacidade
do Governo chegar a consensos internos está longe de ser o aspecto mais
preocupante.
O que assusta é a ligeireza
com que Passos Coelho não se coíbe de fazer anúncios públicos de cortes
sucessivos e novos impostos, como aconteceu agora em relação aos pensionistas e
já havia ocorrido em Setembro com a TSU, que afinal não são para levar a sério.
É o que se chama brincar com o fogo.
Não só o valor da palavra do
primeiro-ministro é posto em causa – alguém estará disponível para tomar como
credível um novo anúncio de Passos Coelho? –, como é gerado um clima de
incerteza entre os portugueses, que tem enormes custos. Os anúncios de novos
cortes nas pensões são, a este propósito, particularmente assustadores. É que
uma coisa é a necessidade permanente de reformar o Estado social de forma
reflectida, adaptando-o a novos contextos, outra, bem diferente, é substituir o
papel das pensões como factor de estabilidade política e de previsibilidade
económica por um estado de ansiedade permanente, que tem, aliás, efeitos
macroeconómicos.
Sabemos hoje o que aconteceu
depois de Setembro com o anúncio da TSU: uma retração imediata do consumo
(visível, por exemplo, nesse indicador avançado que são as vendas de
automóveis, que caíram abruptamente na segunda quinzena de Setembro). Se, ao
contrário do Governo, considerarmos que a economia é uma variável relevante,
rapidamente se percebe que estes anúncios, mesmo que não concretizados,
produzem logo um efeito psicológico. Não por acaso, de cada vez que este
Governo fala em folgas orçamentais, podemos com segurança antecipar o seu
destino – são invariavelmente consumidas pela recessão que se intensifica
sempre.
Como se não bastasse a
degradação social, as exigências políticas associadas à austeridade e a
ausência de qualquer perspectiva de saída para os nossos bloqueios económicos,
temos ainda um Governo que nunca hesita entre abdicar do seu papel como factor
de segurança e estabilidade para se tornar, objectivamente, um agente de
incerteza e de ansiedade. Exatamente com que propósito, não se chega a
perceber.