sábado, setembro 22, 2012
quinta-feira, setembro 20, 2012
Uma coligação de gente perigosa
A crise é uma oportunidade. Esta coluna
poderia começar assim todas as semanas, para depois prosseguir com mais um
exemplo. Mas, na verdade, nunca em nenhuma outra altura ficou tão claro que a
crise é, de facto, uma oportunidade. Uma oportunidade para impor uma agenda
política que de outro modo não seria possível de implementar. Esta crise,
sabemos hoje, tem sido a oportunidade há muito esperada para pôr em marcha a
maior experiência de engenharia social que o país conheceu.
Na última semana, em dose dupla,
primeiro por Passos Coelho e depois por Vítor Gaspar, assistimos ao anúncio do
que, a ser aprovado, será a maior redistribuição de riqueza alguma vez ocorrida
no Portugal democrático. As alterações na taxa social única, combinadas com
cortes nas pensões, no salário mínimo e aumentos nos impostos, não só provam
que o Governo está empenhado em ir bem para além da troika, como demonstram que
o que está em causa já não é a consolidação das contas públicas, mas, sim, um
processo de alteração das relações de poder económico em Portugal, que encontra
na devastação social e no empobrecimento instrumentos privilegiados.
Nenhum país foi tão longe na
experiência que agora se anuncia em Portugal. Uma experiência onde cegueira
ideológica se articula com governação através dos modelos econométricos que
tanto fascínio exercem sobre o ministro Vítor Gaspar. Ora, como é sabido, a
realidade e o bom senso são duas variáveis que tendem a não estar presentes
nestes modelos. Aliás, esta semana, em entrevista à TSF, o ex-presidente
brasileiro, Fernando Henrique Cardoso, sublinhava que “a economia é uma
navegação; não é uma ciência”. Em Portugal, o triunvirato que nos governa, liderado
por um primeiro-ministro impreparado, coadjuvado por uma dupla de fanáticos,
Gaspar e Borges, acredita piamente no contrário e está a entregar-nos como
cobaias para uma experiência académica.
Desde Vasco Gonçalves que Portugal não era
governado por gente tão perigosa. O trio Passos/Gaspar/Borges vê-se a si próprio
como uma nova vanguarda, a quem a verdade foi revelada e que julga representar os
interesses objectivos do país. Acontece que se continuarmos a insistir no ir
para além da troika, se não combatermos politicamente as exigências que nos são
feitas, se “não berrarmos” nas instâncias internacionais (para usar a feliz
expressão de Ferreira Leite), daqui a um ano teremos, de novo, metas do défice
revistas e mais anúncios de cortes e aumento dos impostos. Não é preciso nenhum
modelo para prever que a receita que falhou no último ano falhará num patamar
ainda mais elevado no próximo ano.
Neste momento só podemos esperar uma
coisa. Que em nome da sensatez e dos equilíbrios institucionais, este processo
seja parado já. Se não o for agora, será tarde de mais: os estragos estarão feitos
e a revolta e a mudança terão lugar na rua.
publicado no Expresso de 15 de Setembro.
quinta-feira, setembro 13, 2012
Sacudir a água do capote
Não
precisamos de recuar muito no tempo para reconstruir a história. Há pouco mais
de um ano, fazia sentir-se por aí um clamor profundo para que se chamasse o
“FMI”. Era-nos dito que era a forma de colocar fim ao despautério governamental,
ao descontrolo das contas públicas e a solução para que se fizessem as reformas
necessárias, invariavelmente adiadas. Com o inestimável contributo do
Presidente da República, foi provocada uma crise política que tudo resolveria.
Pelo caminho, José Sócrates, ao mesmo tempo que se recusava a governar com o
FMI, negociava um pedido de resgate, envolvendo o PS num paradoxo insuperável,
também no médio prazo. No dia 5 de Maio, com, pasme-se, um governo
demissionário, o memorando era apresentado e ninguém se eximiu de assumir a sua
paternidade.
Eduardo
Catroga, numa memorável aparição televisiva, reclamava todos os louros do
programa e declarava desassombradamente que o PSD iria ser “muito mais radical no nosso programa do que a troika”. Para que não restassem dúvidas,
Passos Coelho, então candidato a primeiro-ministro, afirmaria que “o programa
do PSD está muito para além daquilo que a troika
propõe". Sócrates, empurrado pelas circunstâncias que já não
controlava, apresentava o memorando como bem menos agressivo do que a intenção
original da troika.
Sabemos hoje que o memorando tinha
metas para a consolidação orçamental inviáveis e assentava numa estratégia desligada
da realidade com um conjunto de condicionalismos devastadores. A ideia de
austeridade expansionista foi mais uma vez testada com o insucesso de sempre.
Contra todas as evidências e avisos, estrangulou-se a economia, fez-se colapsar
a procura interna, aumentou-se a pressão fiscal e o inevitável aconteceu: a
economia deprimiu, o desemprego aumentou para além das estimativas, a receita
fiscal ficou bem abaixo do orçamentado e a despesa com os estabilizadores
automáticos, pese embora todas as reformas, não parou de aumentar. No fim, sem
surpresas, mesmo com um ministro das Finanças completamente alinhado com o
pensamento mágico da troika, o défice
não será cumprido e a dívida continua a crescer. Claro que está tudo a correr
melhor do que o previsto, na visão lúcida de António Borges.
Chegados aqui, assistimos também à
repetição de um filme de péssima qualidade. A troika insiste no passa-culpas que sempre fez perante o seu
histórico de intervenções de insucesso e que é típico dos radicalismos
ideológicos: o problema nunca é da natureza do programa, mas do modo como é
aplicado. A declaração de que “este programa é do governo” vai nesse sentido. O
corolário lógico é claro: para a troika,
o programa grego está a falhar porque o governo não se empenhou o suficiente no
seu cumprimento, enquanto o programa português está a falhar porque o governo
se empenhou demasiadamente. Não se chega a perceber qual será a dose justa de
empenho necessária para que um programa deste tipo corra bem. Mas em algum
momento, a troika e os seus agentes
nacionais terão de ser seriamente avaliados.
artigo publicado no Expresso de 8 de Setembro.
terça-feira, setembro 04, 2012
Os filhos dos outros
Há um
par de princípios que tenho como fundamentais para a educação dos meus filhos: em
primeiro lugar, não desistir deles. Ter a certeza que, mesmo quando falharem,
apoiá-los-ei e não aceitarei que o falhanço seja definitivo. Em segundo lugar,
querer para eles sempre o melhor. Há uma ideia feita, muito propalada, que
defende que são as agruras na infância que enrijecem. Não me parece que assim
seja. Como ensina a escritora italiana Natalia Ginzburg num notável texto,
infelizmente não traduzido para português, “Scarpe Rotte” (Sapatos Rotos),
sobre a sua experiência de mãe na clandestinidade durante o fascismo, uma
infância protegida dá-nos a força que mais tarde vamos precisar para enfrentar
as dificuldades.
Se acredito
que estes princípios devem guiar a educação dos meus filhos, posso desejar algo
de diferente para os filhos dos outros? Claramente, não. Foi disso que me
lembrei quando confrontado com a proposta de Nuno Crato de tornar o ensino
profissional um recurso para os maus alunos do ensino básico. É o género de solução
que há quem deseje para os filhos dos outros, mas que é incapaz de desejar para
os seus próprios filhos.
Para
além de remeter para um modelo de ensino dual que caracterizou o salazarismo,
com um insucesso que nos continua a perseguir, a proposta assenta também num
equívoco muito disseminado e que é reproduzido acriticamente – a ideia de que
com a transição para a democracia se acabou com o ensino profissional em
Portugal. Esta falsidade confunde fim das escolas industriais e comerciais –
uma boa decisão que começou a ser germinada pelo Governo de Marcelo Caetano –
com transformação do ensino técnico.
Em
democracia, com nomes diferentes, é verdade, e com excesso de alterações de
modelo, foi feito um enorme investimento no ensino vocacional. Hoje,
estabilizado o sistema, a percentagem de alunos que frequenta a via
profissional é elevada (cerca de 40% dos alunos do secundário) e esta via
profissionalizante não tem já a imagem de parente pobre da escolaridade.
A
proposta do Governo, para além de tornar muito precoce a possibilidade de optar por uma via profissional (em
contra-tendência com todos os países com quem comparamos), tem um duplo efeito
negativo. Ao mesmo tempo que desvaloriza o ensino profissional (passa a ser de
novo uma opção para as crianças que
“não servem para escola”), significa, de facto, que o sistema educativo desiste
de combater a chaga social que é o insucesso escolar.
Numa só
medida, o país desistiria de continuar a lutar contra o insucesso escolar com
mais tempo de trabalho, maior acompanhamento em disciplinas nucleares como o
português, a matemática e o inglês (ou as crianças da via profissional não
teriam competências básicas nestas disciplinas, que são precisamente as que provocam
maior insucesso escolar?) e tornaria o ensino profissional uma opção fácil,
certificando “talhantes e canalizadores” sem competências básicas. No fundo, o
país não só passaria a desistir dos filhos dos outros, como lhes reservaria uma
segunda escolha.
publicado no Expresso de 1 de Setembro
O plágio do orangotango
Um
dos traços que distingue as nossas políticas públicas é a instabilidade.
Pagamos um preço elevado por isso. Ao longo das últimas décadas foi
invariavelmente assim: mudou o Governo, mudaram as políticas e, pior, mudou o ministro
dentro do mesmo Governo e as políticas voltaram a mudar. As continuidades foram
poucas e a capacidade de avaliar e aprofundar o que funcionou tendeu a ser
escassa. Os resultados estão à vista. Contudo, no que é um paradoxo também bem
português, esta propensão para fazer tábua rasa das políticas preexistentes
coexiste com uma outra tendência, a que chamaria “baralhar e voltar a dar”.
Na
oposição um partido critica uma determinada política; quando chega ao Governo continua
a fustigar o seu antecessor, para logo apresentar uma solução inovadora que, pretensamente,
vai romper com o legado e responder aos erros cometidos. Depois, analisada com
atenção a solução vendida como nova, rapidamente se percebe que, afinal, de
novo tem pouco: é apenas a mesma medida com novas roupagens e envolvida por outro
discurso. Repare-se nestes exemplos recentes.
Quando
estava na oposição, o CDS apontou todas as baterias ao rendimento mínimo.
Tratava-se de um subsídio à preguiça e uma prestação que alimentava vícios,
era-nos dito. Uma vez no Governo, logo se apressou a reformar a medida,
garantindo que o novo regime ia garantir a reinserção social dos beneficiários.
Ora, o que é que o Governo anunciou? No essencial, que os beneficiários eram
obrigados a aceitar trabalho ou formação profissional, um aspecto que faz parte
do código genético da medida tal como existe desde 1996.
Em
2005, quando se iniciou o plano que levou ao encerramento de escolas com poucos
alunos, o PSD não se inibiu de criticar com veemência a iniciativa. Uma vez
chegado ao poder, Nuno Crato, enquanto, de facto, avalizava o fecho de mais
duas centenas de escolas, não se coibia de distinguir este processo dos
anteriores. Nas palavras do próprio, “há encerramentos
de escolas e encerramentos de escolas”. Como se vê, uma mudança profunda.
O
anterior Governo atribuiu uma remuneração às centrais eléctricas por estarem
disponíveis em permanência para produzir energia. A opção foi muito criticada e
oferecida como exemplo das rendas excessivas no sector das energias, vulgo
regabofe. Álvaro Santos Pereira, uma vez ministro, apressou-se a aprovar uma
portaria a revogar os incentivos. Passados três meses, o mesmo ministro aprovou
uma nova portaria, desta feita ressuscitando os incentivos.
Em “A Rebelião das Massas”, o
filósofo Ortega y Gasset defendia que o que distingue o homem do animal é a
capacidade de memória. Neste sentido escreveu que “romper a continuidade
com o passado é querer começar de novo, é aspirar a descer e plagiar o
orangotango.” A falta de memória que caracteriza as
políticas portuguesas combinada com a vontade de começar tudo de novo, é não só
uma forma de plagiar o orangotango como ajuda a compreender a falência das
nossas políticas.
publicado no Expresso de 25 de Agosto