De surpresa em surpresa
Basta recuarmos um ano para recordarmos as loas que eram tecidas ao memorando de entendimento. A troika,
foi-nos dito, apresentava-nos o programa com as reformas estruturais que o país
esperava há décadas. Por cá, num momento em que o patriotismo atingiu mínimos
históricos, faziam-se sentir ondas de júbilo com o regresso dos salvíficos
homens de negro. Um ano passado, chega a ser penoso assistir à troika a
avaliar-se a si própria, tentando salvar a face perante uma solução que está a
falhar.
O último relatório do FMI é exemplar da
estratégia em curso. Colocada a Grécia de quarentena, Portugal tem de ser
oferecido como exemplo de sucesso, dê por onde der: a aplicação do memorando é avaliada
positivamente, mesmo que a execução orçamental esteja a falhar, o mercado de
trabalho se afunde e ninguém faça ideia de como atingir as metas do défice para
este ano e, pior, para o próximo. Até porque uma coisa é a realidade, outra a
narrativa. E esta é simples.
Na Grécia a ‘austeridade expansionista’
não funciona porque as instituições são débeis, os políticos não se empenharam
no cumprimento do acordado e o povo é ingovernável. Já Portugal é uma outra
história: o Governo é liderado por um ministro das Finanças sem reservas
ideológicas face à receita, o primeiro-ministro quer mesmo, veja-se bem, “ir
além da troika” e, sob pano de fundo, temos paz social. Perante isto, o
memorando não poderia mesmo falhar.
Tendo
em conta que a culpa é da realidade e não do plano traçado, à troika só resta
reforçar a dose aplicada. O desemprego cresce? Leve-se mais longe a reforma do
mercado de trabalho e continue-se a baixar salários, acelerando o colapso da
procura interna. As empresas estão sufocadas? Reduza-se a taxa social única,
desequilibrando ainda mais o orçamento da segurança social. Os cortes nos
subsídios são inconstitucionais? Encontre-se equivalentes do lado da despesa,
talvez desmantelando o serviço nacional de saúde ou a escola pública.
Enquanto a realidade não se conforma
com os seus pressupostos, os peritos que nos governam vão revelando a sua surpresa.
Depois do ministro Gaspar ter declarado pausadamente que “não compreendia o que
se estava a passar no mercado de trabalho”, esta semana o responsável do FMI
declarou que “tinha sido uma surpresa a inconstitucionalidade dos cortes nos
subsídios”. Perante tanta surpresa, não devíamos também nós avaliar a troika e
a suas soluções? Afinal, o modelo que têm na cabeça não previa nada do que tem
estado a acontecer e continuam incapazes de reconhecer que o agravamento da situação é também
efeito das suas políticas.
Silva Peneda, um oásis de bom-senso
entre as figuras institucionais portuguesas, afirmou esta semana na SIC-N que “não era de surpreender, para quem
conhecesse a realidade da economia, que isto ia acontecer”, para logo
acrescentar que, não havendo ajustamento sem dor, sentia uma inquietação: “pode
haver dor e não haver ajustamento”. Ora aí está uma coisa
que nos tem faltado: políticos com realismo, capazes de travar os radicalismos ideológicos
que nos governam.
publicado no Expresso de 21 de Julho.