O tempo da memória
O ano que está para acabar teve uma característica distintiva: o seu tempo, o ritmo a que passou. Bem sei que há uma urgência que nos leva a dizer o mesmo no fim de cada ano que passa. Mas, tendo a acreditar que neste caso não terá sido assim. Em 2004, combinaram-se os tempos demasiado velozes, com os tempos lentos e persistentes. Isto porque neste ano, o modo como percepcionámos os acontecimentos e os transformámos em memória foi, em si, diferente de um passado não muito distante.
2004 foi, é verdade, particularmente fértil em episódios políticos e em casos e eventos que emocionaram o país. Em todos os momentos houve, no entanto, um aspecto marcante: a velocidade com que foram percepcionados e rapidamente substituídos pelo acontecimento seguinte. Hoje, não apenas só “acontece” o que é passível de ser apresentado enquanto escândalo, como o que “acontece” é impossível de ser seguido na totalidade por quem quer que seja. Antes de mais, pelos próprios emissores das notícias, os jornalistas; mas, também, pelos receptores, os cidadãos; e, finalmente, naquilo que é o elemento mais extraordinário deste ritmo, por quem deve reagir às notícias, os visados directamente ou os agentes que se têm de posicionar perante estas (designadamente os políticos).
O efeito deste tempo é que cada acontecimento, quando visto isoladamente, torna-se irrelevante e é ultrapassado pelo facto seguinte. A consequência é a ausência de memória colectiva, que leva a que os novos episódios percam o seu contexto ou, naquilo que é uma forma extrema, mas muito frequente, a mesma notícia seja dada mais do que uma vez, com algum espaçamento no tempo, como se de uma novidade se tratasse. No meio de tudo isto, a verificação racional e sequencial do que acontece torna-se uma impossibilidade, abrindo o campo para um debate público baseado nas emoções, nos preconceitos, na difamação e na irracionalidade.
Dois exemplos que confirmam esta ideia: o “processo Casa Pia” e a curta história política deste Governo.
No primeiro caso, o ritmo alucinante da informação, sem que tenha sido possível separar o que são factos daquilo que são meros boatos ou mentiras puras, gerou, da parte do receptor, uma incapacidade de destrinçar o que era ou não verdade. Para além do mais, dificilmente alguém foi capaz de acompanhar as consequências e a sequência das histórias que foram sendo dadas. No “processo Casa Pia”, a ausência de memória levou frequentemente a que uma notícia tenha sido desmentida para, mais tarde, voltar à tona, como se de uma novidade se tratasse, levando a que quem, num segundo momento, quisesse desmentir o que já antes havia desmentido, o tenha feito numa altura em que já ninguém tinha presente a notícia em causa. No fim, o que ficou foi apenas um sentimento generalizado de desconfiança face a tudo e todos. É este o ritmo que cria a terra fértil para os canalhas medrarem.
No caso da demissionária experiência governativa, a cadência alucinante de casos levou a que seja difícil recordar o que se passou com exactidão. Desde finais de Julho até agora, passaram pouco mais de cinco meses, no entanto, a ideia que fica é que este Governo durou bastante mais. Aqui, o tempo lento resultou do facto deste Governo ter sido liderado por personalidades que são elas mesmas filhas do ritmo da comunicação nos nossos dias.
Desde o início, Santana Lopes e Paulo Portas optaram por hiperbolizar o próprio contexto em que se moviam, criando uma sucessão interminável de factos que tinham também como objectivo apagar a memória dos capítulos anteriores. Acontece que entre a voracidade com que se sucederam os episódios, o que acabou por ficar foi, acima de tudo, a ausência de memória sobre cada um deles, acompanhada por uma desconfiança difusa sobre as lideranças. Santana Lopes e Paulo Portas não tentaram contrariar o ritmo em que vive a comunicação nos nossos dias, nem procuraram fazer dele o contexto em que se moviam. Pelo contrário, ambicionaram governar acelerando-o ainda mais. No fim, foram tragados pela sua própria táctica.
O tempo de 2004 leva a que seja difícil recordar com exactidão tudo o que se passou ao longo do ano. O ritmo a que fomos substituindo um escândalo pelo escândalo seguinte e a que nos fomos esquecendo da notícia de cada dia, para logo, em seu lugar, colocarmos uma outra, criou-nos um vazio na memória. É por isso que, no fim de 2004, e quando os discursos sobre a inviabilidade do país abundam, convém ter presente que se não formos colectivamente capazes de recordar o passado, estaremos condenados a repeti-lo. Contrariar o ritmo a que substituímos o passado e ter memória sobre o que se passou de facto é, um primeiro passo, para podermos, no futuro, ter um país decente. Um primeiro passo que é decisivo, mas, também, difícil de ser dado.
publicado em A Capital
2004 foi, é verdade, particularmente fértil em episódios políticos e em casos e eventos que emocionaram o país. Em todos os momentos houve, no entanto, um aspecto marcante: a velocidade com que foram percepcionados e rapidamente substituídos pelo acontecimento seguinte. Hoje, não apenas só “acontece” o que é passível de ser apresentado enquanto escândalo, como o que “acontece” é impossível de ser seguido na totalidade por quem quer que seja. Antes de mais, pelos próprios emissores das notícias, os jornalistas; mas, também, pelos receptores, os cidadãos; e, finalmente, naquilo que é o elemento mais extraordinário deste ritmo, por quem deve reagir às notícias, os visados directamente ou os agentes que se têm de posicionar perante estas (designadamente os políticos).
O efeito deste tempo é que cada acontecimento, quando visto isoladamente, torna-se irrelevante e é ultrapassado pelo facto seguinte. A consequência é a ausência de memória colectiva, que leva a que os novos episódios percam o seu contexto ou, naquilo que é uma forma extrema, mas muito frequente, a mesma notícia seja dada mais do que uma vez, com algum espaçamento no tempo, como se de uma novidade se tratasse. No meio de tudo isto, a verificação racional e sequencial do que acontece torna-se uma impossibilidade, abrindo o campo para um debate público baseado nas emoções, nos preconceitos, na difamação e na irracionalidade.
Dois exemplos que confirmam esta ideia: o “processo Casa Pia” e a curta história política deste Governo.
No primeiro caso, o ritmo alucinante da informação, sem que tenha sido possível separar o que são factos daquilo que são meros boatos ou mentiras puras, gerou, da parte do receptor, uma incapacidade de destrinçar o que era ou não verdade. Para além do mais, dificilmente alguém foi capaz de acompanhar as consequências e a sequência das histórias que foram sendo dadas. No “processo Casa Pia”, a ausência de memória levou frequentemente a que uma notícia tenha sido desmentida para, mais tarde, voltar à tona, como se de uma novidade se tratasse, levando a que quem, num segundo momento, quisesse desmentir o que já antes havia desmentido, o tenha feito numa altura em que já ninguém tinha presente a notícia em causa. No fim, o que ficou foi apenas um sentimento generalizado de desconfiança face a tudo e todos. É este o ritmo que cria a terra fértil para os canalhas medrarem.
No caso da demissionária experiência governativa, a cadência alucinante de casos levou a que seja difícil recordar o que se passou com exactidão. Desde finais de Julho até agora, passaram pouco mais de cinco meses, no entanto, a ideia que fica é que este Governo durou bastante mais. Aqui, o tempo lento resultou do facto deste Governo ter sido liderado por personalidades que são elas mesmas filhas do ritmo da comunicação nos nossos dias.
Desde o início, Santana Lopes e Paulo Portas optaram por hiperbolizar o próprio contexto em que se moviam, criando uma sucessão interminável de factos que tinham também como objectivo apagar a memória dos capítulos anteriores. Acontece que entre a voracidade com que se sucederam os episódios, o que acabou por ficar foi, acima de tudo, a ausência de memória sobre cada um deles, acompanhada por uma desconfiança difusa sobre as lideranças. Santana Lopes e Paulo Portas não tentaram contrariar o ritmo em que vive a comunicação nos nossos dias, nem procuraram fazer dele o contexto em que se moviam. Pelo contrário, ambicionaram governar acelerando-o ainda mais. No fim, foram tragados pela sua própria táctica.
O tempo de 2004 leva a que seja difícil recordar com exactidão tudo o que se passou ao longo do ano. O ritmo a que fomos substituindo um escândalo pelo escândalo seguinte e a que nos fomos esquecendo da notícia de cada dia, para logo, em seu lugar, colocarmos uma outra, criou-nos um vazio na memória. É por isso que, no fim de 2004, e quando os discursos sobre a inviabilidade do país abundam, convém ter presente que se não formos colectivamente capazes de recordar o passado, estaremos condenados a repeti-lo. Contrariar o ritmo a que substituímos o passado e ter memória sobre o que se passou de facto é, um primeiro passo, para podermos, no futuro, ter um país decente. Um primeiro passo que é decisivo, mas, também, difícil de ser dado.
publicado em A Capital