Os políticos e os competentes
No meio da desagregação que o Governo tem demonstrado, o Prof. Cavaco resolveu publicar no Expresso um artigo onde se revela em todo o seu esplendor. Sinal dos tempos, a confusão política é tal que, da esquerda à direita, diversas vozes vieram aplaudir as suas palavras. Enquanto o faziam, ficava esquecido, por um lado, o propósito eminentemente táctico do texto em causa e, por outro, de que este, acima de tudo, evidencia que o Cavaco de hoje é o mesmo político de há vinte anos.
Para quem tinha dúvidas de que a candidatura presidencial de Cavaco está em marcha, com o artigo do Expresso elas terão ficado dissipadas. Cavaco está a testar a sua candidatura, mas sabe que para ter condições de vitória tem obrigatoriamente de afastar-se deste PPD/PSD. É que o partido pode continuar a gostar muito de Cavaco; acontece que este já não quer ter nada a ver com o seu partido. Distância parece ser a palavra-chave de Cavaco, face ao desvario em que Santana e os seus pares se têm envolvido. Tudo isto parece evidente do ponto de vista táctico, não fora o facto singelo de sem uma máquina partidária mobilizada não ser possível fazer uma campanha eleitoral.
Mas enquanto se demarcava de Santana e do que resta do Santanismo (que, aliás, com o passar dos dias é sempre menos), Cavaco aproveitou para expor a sua doutrina sobre a coisa pública e os políticos. E aqui nada de novo, apenas o regresso à sua identidade original. O argumento é simples: para Cavaco assiste-se a uma degradação da qualidade dos agentes políticos em Portugal, que tem levado a uma crescente mediocridade no exercício da actividade político-partidária. A solução apontada assenta num maior envolvimento das elites profissionais e dos quadros técnicos qualificados na vida política. Tudo isto com o objectivo de, contrariando a lei de Gresham, fazer com que os políticos competentes afastem os incompetentes – que são hoje dominantes. Não há dúvidas que face ao que se tem passado entre nós, o argumento parece, à primeira vista, aliciante. No entanto, esconde um caminho perigoso.
O discurso da degradação da classe política é recorrente e faz-se sentir, com maior ou menor intensidade, em todos os quadrantes políticos e em todos os estratos sociais. Do taxista com ressabiamento social do “antigamente é que isto era” ao quadro superior que defende que “no sector privado é que as coisas funcionam”, este discurso tem-se generalizado a um ritmo avassalador. Acontece que aquilo a que se assiste entre nós é, no essencial, um processo natural em todas as democracias consolidadas e que pouco tem a ver com idiossincrasias nacionais. Passado os períodos carismáticos, associados normalmente às transições de regime, os sistemas políticos tendem a ser governados por “homens” normais, ao mesmo tempo que se acentua o distanciamento entre as elites da sociedade e as da política. Com a normalização institucional, passam a predominar aqueles que, para utilizar a linguagem de Max Weber, vivem “da” política, por contraponto àqueles que vivem “para” a política.
É certo que em Portugal há uma agravante. Desde o 25 de Abril, as expectativas da população foram sempre crescentes, sendo que hoje já não é possível responder politicamente do mesmo modo aos desejos dos portugueses. Isto leva a que o processo de profissionalização da classe política tenha coexistido no tempo com a incapacidade do Estado em continuar a assegurar crescimento económico contínuo e melhoria das condições de vida ano após ano. Tudo isto contribui para a degradação da imagem do sistema político e por acréscimo da classe política aos olhos dos cidadãos.
O artigo de Cavaco tem um segundo elemento, que procura retomar o essencial da identidade política do ex-primeiro-ministro. O que perpassa por todo o texto é, também, que o próprio Cavaco não só não pertence à classe política, como paira acima dela, vindo directamente do mundo dos “competentes” (de que naturalmente não fazem parte os políticos). Acontece que, hoje como em 1985, aquando da sua mitificada deslocação à Figueira da Foz, o que Cavaco introduz com o seu discurso é a ideia perigosa de que a gestão da coisa pública não é uma questão de opções políticas, mas, essencialmente, de gestão técnica, de competência. Ora, este discurso regenerador, não apenas valoriza a indiferenciação das alternativas em jogo, como utiliza para avaliar a actividade política parâmetros que não são conformes com a sua natureza específica.
Com o seu artigo, em que desqualifica os agentes do sistema de que faz parte, Cavaco regressa à amálgama ideológica que sempre o caracterizou. Um misto de populismo de direita que dá voz às desconfianças difusas face ao sistema político, com uma visão tecnocrática que não apenas glorifica elites – que, tragicamente para o país não existem - como trata as questões públicas como meros assuntos técnicos. Que Cavaco regresse à sua fórmula do passado não surpreende; que a esquerda em nome de interesses circunstanciais tenha embarcado no seu discurso é que é admirável. A menos que se esteja a assistir a um desinvestimento nas eleições presidenciais.
publicado em A Capital, 1 de Dezembro
Para quem tinha dúvidas de que a candidatura presidencial de Cavaco está em marcha, com o artigo do Expresso elas terão ficado dissipadas. Cavaco está a testar a sua candidatura, mas sabe que para ter condições de vitória tem obrigatoriamente de afastar-se deste PPD/PSD. É que o partido pode continuar a gostar muito de Cavaco; acontece que este já não quer ter nada a ver com o seu partido. Distância parece ser a palavra-chave de Cavaco, face ao desvario em que Santana e os seus pares se têm envolvido. Tudo isto parece evidente do ponto de vista táctico, não fora o facto singelo de sem uma máquina partidária mobilizada não ser possível fazer uma campanha eleitoral.
Mas enquanto se demarcava de Santana e do que resta do Santanismo (que, aliás, com o passar dos dias é sempre menos), Cavaco aproveitou para expor a sua doutrina sobre a coisa pública e os políticos. E aqui nada de novo, apenas o regresso à sua identidade original. O argumento é simples: para Cavaco assiste-se a uma degradação da qualidade dos agentes políticos em Portugal, que tem levado a uma crescente mediocridade no exercício da actividade político-partidária. A solução apontada assenta num maior envolvimento das elites profissionais e dos quadros técnicos qualificados na vida política. Tudo isto com o objectivo de, contrariando a lei de Gresham, fazer com que os políticos competentes afastem os incompetentes – que são hoje dominantes. Não há dúvidas que face ao que se tem passado entre nós, o argumento parece, à primeira vista, aliciante. No entanto, esconde um caminho perigoso.
O discurso da degradação da classe política é recorrente e faz-se sentir, com maior ou menor intensidade, em todos os quadrantes políticos e em todos os estratos sociais. Do taxista com ressabiamento social do “antigamente é que isto era” ao quadro superior que defende que “no sector privado é que as coisas funcionam”, este discurso tem-se generalizado a um ritmo avassalador. Acontece que aquilo a que se assiste entre nós é, no essencial, um processo natural em todas as democracias consolidadas e que pouco tem a ver com idiossincrasias nacionais. Passado os períodos carismáticos, associados normalmente às transições de regime, os sistemas políticos tendem a ser governados por “homens” normais, ao mesmo tempo que se acentua o distanciamento entre as elites da sociedade e as da política. Com a normalização institucional, passam a predominar aqueles que, para utilizar a linguagem de Max Weber, vivem “da” política, por contraponto àqueles que vivem “para” a política.
É certo que em Portugal há uma agravante. Desde o 25 de Abril, as expectativas da população foram sempre crescentes, sendo que hoje já não é possível responder politicamente do mesmo modo aos desejos dos portugueses. Isto leva a que o processo de profissionalização da classe política tenha coexistido no tempo com a incapacidade do Estado em continuar a assegurar crescimento económico contínuo e melhoria das condições de vida ano após ano. Tudo isto contribui para a degradação da imagem do sistema político e por acréscimo da classe política aos olhos dos cidadãos.
O artigo de Cavaco tem um segundo elemento, que procura retomar o essencial da identidade política do ex-primeiro-ministro. O que perpassa por todo o texto é, também, que o próprio Cavaco não só não pertence à classe política, como paira acima dela, vindo directamente do mundo dos “competentes” (de que naturalmente não fazem parte os políticos). Acontece que, hoje como em 1985, aquando da sua mitificada deslocação à Figueira da Foz, o que Cavaco introduz com o seu discurso é a ideia perigosa de que a gestão da coisa pública não é uma questão de opções políticas, mas, essencialmente, de gestão técnica, de competência. Ora, este discurso regenerador, não apenas valoriza a indiferenciação das alternativas em jogo, como utiliza para avaliar a actividade política parâmetros que não são conformes com a sua natureza específica.
Com o seu artigo, em que desqualifica os agentes do sistema de que faz parte, Cavaco regressa à amálgama ideológica que sempre o caracterizou. Um misto de populismo de direita que dá voz às desconfianças difusas face ao sistema político, com uma visão tecnocrática que não apenas glorifica elites – que, tragicamente para o país não existem - como trata as questões públicas como meros assuntos técnicos. Que Cavaco regresse à sua fórmula do passado não surpreende; que a esquerda em nome de interesses circunstanciais tenha embarcado no seu discurso é que é admirável. A menos que se esteja a assistir a um desinvestimento nas eleições presidenciais.
publicado em A Capital, 1 de Dezembro
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