quarta-feira, outubro 20, 2004

Velhas Fronteiras

Numa sociedade democrática, não existe forma mais brutal de privação de liberdade do que a ausência de recursos materiais. É por isso que, como lembrava, em recente entrevista à Visão, Luís Ritto (alto funcionário da UE, com responsabilidades nas áreas do desenvolvimento e da alimentação), “ninguém com fome se preocupa com a democracia”. A pobreza e a sua forma mais brutal, a fome, não são questões privadas, pelo contrário, são públicas e políticas, sendo que isso é particularmente verdade para o caso português.
Como bem demonstram os dados recentemente divulgados pelo INE, a propósito da passagem do dia “internacional para a erradicação da pobreza”, cerca de 20% da população portuguesa encontrava-se em 2001 em risco de pobreza, cinco pontos percentuais acima da média europeia. A isto acresce que o padrão de desigualdades na sociedade portuguesa – a distância entre ricos e pobres – continua a ser o mais grave de toda a União. Por outro lado, como revelam diversos estudos, depois de uma melhoria de ambos os indicadores durante a segunda metade da década de noventa, os últimos anos têm-se caracterizado por um agravamento da situação. Estes dados não serão, aliás, estranhos ao pessimismo que se tem instalado na sociedade portuguesa, bem como ao facto, revelado por uma sondagem recente da Universidade Católica, de a maioria dos portugueses pensar que a pobreza é mais extensa do que de facto ela é e, não menos grave, que, entre nós, tenderá a aumentar nos próximos anos. Julgo que é acertado afirmar que haverá poucos indicadores mais sólidos do que este, quer do mal estar nacional, quer dos erros que, nos últimos tempos, têm sido cometidos nas opções sobre o modelo de desenvolvimento a seguir em Portugal. O “discurso da tanga” tragicamente fez o seu caminho.
Na verdade, se há área governativa que desde há dois anos para cá tem sido alvo de forte ataque ideológico combinado com paralisia administrativa é a das políticas de solidariedade e de combate à pobreza. Num país como o nosso, em que a pobreza continua a revelar uma persistência insuportável, este facto é, ao mesmo tempo, exemplar do desvio ideológico da actual maioria e da sua incompetência na execução das políticas. Após 1995, com os Governos de António Guterres, Portugal encetou, a este nível, um caminho de aproximação à Europa, desenvolvendo uma nova geração de políticas sociais (à cabeça das quais surgia o rendimento mínimo garantido), que tiveram como objectivo fazer face a essa chaga social que é a pobreza. Já com o Governo PSD/PP assistiu-se, em primeiro lugar, à escolha do campo das políticas de solidariedade como espaço privilegiado de afirmação ideológica (os ataques do PP ao RMG, a que o PSD deu cobertura são o exemplo paradigmático disso mesmo), seguindo-se, depois, um abandono político da área, que resultou num marasmo dos serviços públicos responsáveis pela execução das políticas. Se a tudo isto somarmos o desinvestimento no emprego como prioridade política, o resultado é apenas um: a pobreza em Portugal volta a aumentar, envergonhando-nos a todos como sociedade.
Ao longo de trinta anos, Portugal deu passos importantes para que fossem lançadas as bases de um sistema de protecção social, simultaneamente, moderno e eficaz, mas, em apenas pouco mais de dois anos, a actual maioria tem-se encarregado de delapidar esse frágil património. As consequências estão à vista, assim como a necessidade de retomar o caminho interrompido. No entanto, no futuro, o que estará em causa não será apenas o necessário desenvolvimento das prestações, mas, também, a garantia de novos direitos e a promoção de novas solidariedades e oportunidades de inserção, bem como a expansão de serviços de apoio aos indivíduos, à família e à comunidade.
No final de 2004, quase vinte anos após a adesão à União Europeia, e com trinta anos de democracia, Portugal está ainda longe de ser uma sociedade em que o direito de se nascer rico conviva com o direito de não se nascer pobre, pelo que importa recuperar o combate à pobreza como elemento central da agenda política. Trata-se de um objectivo que nos deve responsabilizar a todos, como comunidade.
É por isso que enquanto o país deve traçar novas fronteiras, com um horizonte de modernidade, não deve, neste processo, esquecer que muitos dos problemas essenciais que temos ainda de colectivamente ultrapassar passam pelas velhas fronteiras, pelos velhos problemas – entre eles a luta contra as desigualdades e a pobreza. Este é certamente um dos desafios mais exigentes e complexos que enfrenta a sociedade portuguesa, mas, por isso mesmo, só possível de enfrentar com forte e determinado investimento político.
artigo publicado em A Capital, 20 de Outubro