quarta-feira, setembro 08, 2004

A incompetência em acção

Quando frequentei o ensino secundário público, na segunda metade dos anos oitenta, a normalidade era que nunca se soubesse quando é que as aulas começavam. Por uma razão ou por outra, em Outubro, as semanas iam-se sucedendo e aulas nem vê-las. Naturalmente que este facto deixava-me a mim e aos meus colegas com um contentamento que era inversamente proporcional ao dos nossos pais, que viam as nossas férias prolongarem-se sem que fosse possível prever com exactidão o seu fim. Espantosamente, numa daquelas reformas que como muitas das que são importantes passa despercebida, a partir da segunda metade dos anos noventa, foi possível fixar uma semana em Setembro na qual as aulas se iniciavam. Mas eis senão quando, em apenas dois anos, o actual governo, sozinho e sem qualquer factor externo que a isso o obrigasse, conseguiu fazer recuar o sistema educativo para um passado de desorganização que há quase dez anos havia sido afastado. O caos que tem sido gerado em torno das colocações dos professores do secundário é, talvez, o mais acabado dos sintomas da desorganização em curso. A consequência é que, tudo indica, em 2004, as aulas não se vão iniciar com normalidade nas datas previstas.
É sabido que é díficil e custa muitos milhões de euros chegar a uma situação de estabilidade na gestão corrente do sistema educativo. Mas este governo encarregou-se de nos ensinar que desorganizar e destruir o que foi construído é um trabalho rápido, facilmente alcançável, ainda que igualmente custoso. Aquilo a que temos assistido em pouco mais de dois anos, não tem sido apenas a cortes no investimento financeiro ou ao afastar da educação de área de prioridade governativa. Dois primeiros-ministros coligados depois, assiste-se a uma invulgar incapacidade para conseguir o mais simples, mas que porventura é das dimensões mais importantes do sistema: garantir o normal funcionamento das escolas, assegurando que abrem com datas certas e com previsibilidade. Este ano, com professores por colocar e com professores tardiamente colocados, teremos necessariamente um início conturbado do ano lectivo, que perturbará a vida de um sem número de famílias, bem como o equilíbrio das próprias escolas.
É, de facto, dificíl avaliar o número de famílias que, tendo os seus filhos em idade escolar, se vê a braços com uma situação que, nos últimos anos, se havia tornado desconhecida. Do mesmo modo que não será fácil estimar quantos professores sofreram e continuam a sofrer na pele o imbróglio que lhes foi criado. Mas que dizer de um Estado que “coloca” aqueles que o vão servir com pouco mais de quinze dias de antecedência – dias que têm de chegar para preparar tudo, da vida pessoal ao alojamento. É que convém ter presente que um Estado que assim age, deixando aqueles que o servem na incerteza e na angústia, revela tiques de autoritarismo, que não são consonantes, entre outras coisas, com a reforma e modernização da administração pública que tantas vezes é gratuitamente propalada.
Para além de tudo isto, a incapacidade revelada na organização deste concurso de professores tem um efeito desastroso nas próprias escolas e, consequentemente, no sistema educativo. Com um corpo docente que muda todos os anos e que vê a sua relação laboral crescentemente instável, precária e incerta, a escola tem necessariamente de ser um espelho dessa mesma instabilidade, precariedade e incerteza. Mas se a isto somarmos milhares de professores desvalorizados e desmotivados, que quinze dias antes das aulas se iniciarem ainda não sabem onde e o que é que vão leccionar, ficamos sem saber como serão as escolas e, consequentemente, o país do futuro. Agora, mesmo que de modo forçado e artificial se venha procurar criar a aparência de que nada se passou, a verdade é que os danos já estão feitos. Até porque a abertura de um ano escolar não é uma corrida de contra-relógio, mas, pelo contrário, algo em que a estabilidade e a previsibilidade são bens em si.
Numa administração pública gerida com normalidade, o tema da colocação dos professores deveria ser um não-tema. Algo tratado administrativamente e que não levantaria ondas. Se os concursos se transformam em temas políticos é porque algo de muito grave se está a passar. É por isso que uma coisa resulta clara. A forma como sozinho, este Governo, através do Ministério da Educação, conseguiu lançar a confusão ficará para os Anais daquilo que não deve ser feito. Resta aliás, saber se o caos que o Governo conseguiu criar na colocação de professores leva também a popular chancela “Portugal em Acção”.
O que se tem passado em toda esta novela, que se arrasta há largos meses, revela uma característica presente de forma generosa nesta governação. Uma gestão da coisa pública que é feita através de um misto de incompetência e de experimentalismo e que tem levado a que vastos sectores da administração pública estejam, hoje, remetidos a uma enorme e inédita paralisia. Para reforma da administração pública, temos no processo de colocação dos professores mais um exemplo dos caminhos pelos quais nos tem levado este Governo.
artigo publicado em A Capital, 8 de Setembro