Anatomia de um regresso
Desde tempos imemoriais que nos dizem para não olharmos para trás, sob pena de cristalizarmos, de nos transformarmos em sal. Cesare Pavese retomou o tema e recomendou-nos que não "voltássemos aos lugares onde fomos felizes". A verdade é que, com mais ou menos esforço, não resistimos a fazê-lo sempre. Sob as mais diversas formas, insistimos nos regressos, no retorno. De uma forma ou outra, vivemos constantes experiências regressivas, que, reescrevendo o passado, contam um lugar e um tempo felizes, mesmo quando não o foram. Até porque, isso também sabemos de há muito, os únicos verdadeiros paraísos são aqueles que perdemos. É por isso que vivemos uma angústia do futuro, enquanto procuramos encontrar a felicidade à nossa frente.
Sabendo disto, há dez meses que vivia o desassossego de estar ali mesmo, “parado” em Lisboa, dividido entre o receio de olhar para trás e a vontade de regressar. Mas, a segunda acabou por ser mais forte do que o primeiro e, contra todas as “recomendações”, voltei ao mesmo lugar, sabendo que nada me poderia surpreender, que encontraria tudo como havia visto menos de um ano antes. Voltei à Indonésia para estar nos mesmíssimos sítios e para voltar a não fazer as coisas que devia ter feito. Não, não voltei para buscar os sítios que o tempo não me havia permitido visitar. Voltei para repetir a indolência, para deixar o tempo correr do mesmo modo, com os mesmos hábitos, nos mesmos lugares.
Foi Bruce Chatwin quem popularizou e romantizou a ideia da errância, ao retomar a velha máxima de Pascal, que defendia que o homem, ao tornar-se humano, tinha adquirido uma vontade migratória e um desejo de percorrer distâncias, através das estações. Quando o não fazia, quando se tornava sedentário, procurava os seus próprios escapes – os comportamentos violentos, o consumismo, a obsessão com o estatuto social, o aborrecimento, a anomia. Na errância, pelo contrário, o homem encontrava-se com a sua natureza autêntica. Contudo, precisamos de um sítio para pousar o chapéu, lembrava também Chatwin, numa metáfora feliz para a necessidade de ter uma casa. Mas somos felizes apenas com um horizonte longínquo pela frente e com a concretização da vontade de partir. Partir para não estarmos no lugar onde estamos, por vezes só por isso.
Mas, a errância que aqui, nestas ilhas, imagino todos os dias concretizar é diferente dessa. É uma errância de busca da previsibilidade, de saber que posso encontrar tudo no mesmo lugar e saber que o que encontro é o essencial. O clima quente, que nos adormece os sentidos, deixando-nos o espírito claro; o vento que sopra de feição, da terra para o mar, como deve ser, a direito, leve e sem desvios, como que se estivesse profundamente determinado a deixar as ondas sempre iguais, tombando umas a seguir às outras, perfeitas; uma indolência contagiante, feita dos sorrisos das gentes, abertos, incondicionais e de uma pureza inicial.
Regressei para não “ensandecer” de ali mesmo, de ir a lugar nenhum. Regressei pelo desejo de errância, pelo desejo de esquecer os lugares fechados. Mas regressei também, porque sabia que aqui o tempo, como lembrava Sophia, “apaixonadamente encontrava a sua própria unidade” e que, estando aqui, erraticamente aqui, teria, umas semanas depois, uma nova vontade de pousar o chapéu em Lisboa. Regressei, por isso, para poder regressar.
P.S.
A muitos milhares de quilómetros de distância, sem jornais e quase sem internet, procuro pouco as notíciais e as que me chegam são espaçadas. Mas, ainda assim, é difícil esconder o espanto indignado face ao governo a que o Dr. Sampaio deu posse e do qual, em última análise, faz parte. Um governo que, em lugar dos “grandes nomes” mais uma vez prometidos e não concretizados, não é mais do que o governo dos amigos do Dr. Santana, mas, também, um governo do disparate no nome dos ministérios (Segurança Social, Família e Criança – o que, entre outras coisas, pressupõe que as crianças não são parte da família) e dos erros crassos na sua orgânica (separar o trabalho da segurança social significa delapidar um património muito relevante). Mas, não menos grave, é que com o caminho que agora iniciámos, e que não sabemos ainda bem onde nos pode levar, corremos um risco enorme: o da banalização da incompetência e do disparate. E isso, independentemente de tudo o resto, é dificilmente reversível.
artigo publicado em a Capital
Sabendo disto, há dez meses que vivia o desassossego de estar ali mesmo, “parado” em Lisboa, dividido entre o receio de olhar para trás e a vontade de regressar. Mas, a segunda acabou por ser mais forte do que o primeiro e, contra todas as “recomendações”, voltei ao mesmo lugar, sabendo que nada me poderia surpreender, que encontraria tudo como havia visto menos de um ano antes. Voltei à Indonésia para estar nos mesmíssimos sítios e para voltar a não fazer as coisas que devia ter feito. Não, não voltei para buscar os sítios que o tempo não me havia permitido visitar. Voltei para repetir a indolência, para deixar o tempo correr do mesmo modo, com os mesmos hábitos, nos mesmos lugares.
Foi Bruce Chatwin quem popularizou e romantizou a ideia da errância, ao retomar a velha máxima de Pascal, que defendia que o homem, ao tornar-se humano, tinha adquirido uma vontade migratória e um desejo de percorrer distâncias, através das estações. Quando o não fazia, quando se tornava sedentário, procurava os seus próprios escapes – os comportamentos violentos, o consumismo, a obsessão com o estatuto social, o aborrecimento, a anomia. Na errância, pelo contrário, o homem encontrava-se com a sua natureza autêntica. Contudo, precisamos de um sítio para pousar o chapéu, lembrava também Chatwin, numa metáfora feliz para a necessidade de ter uma casa. Mas somos felizes apenas com um horizonte longínquo pela frente e com a concretização da vontade de partir. Partir para não estarmos no lugar onde estamos, por vezes só por isso.
Mas, a errância que aqui, nestas ilhas, imagino todos os dias concretizar é diferente dessa. É uma errância de busca da previsibilidade, de saber que posso encontrar tudo no mesmo lugar e saber que o que encontro é o essencial. O clima quente, que nos adormece os sentidos, deixando-nos o espírito claro; o vento que sopra de feição, da terra para o mar, como deve ser, a direito, leve e sem desvios, como que se estivesse profundamente determinado a deixar as ondas sempre iguais, tombando umas a seguir às outras, perfeitas; uma indolência contagiante, feita dos sorrisos das gentes, abertos, incondicionais e de uma pureza inicial.
Regressei para não “ensandecer” de ali mesmo, de ir a lugar nenhum. Regressei pelo desejo de errância, pelo desejo de esquecer os lugares fechados. Mas regressei também, porque sabia que aqui o tempo, como lembrava Sophia, “apaixonadamente encontrava a sua própria unidade” e que, estando aqui, erraticamente aqui, teria, umas semanas depois, uma nova vontade de pousar o chapéu em Lisboa. Regressei, por isso, para poder regressar.
P.S.
A muitos milhares de quilómetros de distância, sem jornais e quase sem internet, procuro pouco as notíciais e as que me chegam são espaçadas. Mas, ainda assim, é difícil esconder o espanto indignado face ao governo a que o Dr. Sampaio deu posse e do qual, em última análise, faz parte. Um governo que, em lugar dos “grandes nomes” mais uma vez prometidos e não concretizados, não é mais do que o governo dos amigos do Dr. Santana, mas, também, um governo do disparate no nome dos ministérios (Segurança Social, Família e Criança – o que, entre outras coisas, pressupõe que as crianças não são parte da família) e dos erros crassos na sua orgânica (separar o trabalho da segurança social significa delapidar um património muito relevante). Mas, não menos grave, é que com o caminho que agora iniciámos, e que não sabemos ainda bem onde nos pode levar, corremos um risco enorme: o da banalização da incompetência e do disparate. E isso, independentemente de tudo o resto, é dificilmente reversível.
artigo publicado em a Capital
<< Home