quarta-feira, junho 16, 2004

A hecatombe

Depois de uns tímidos arremedos iniciais, os porta-falantes da coligação lá vieram reconhecer o óbvio (ululante?). O que se passou no Domingo foi uma verdadeira hecatombe eleitoral, uma “banhada” ou, como diriam os ingleses, um “deslizamento da terra”. Nem o mais pessimista dos cenários da direita, nem o mais optimista dos da esquerda poderia prever o que veio a acontecer.
Em eleições nacionais, desde 1975, somados os votos dos dois partidos da coligação que nos desgoverna, nunca estes tinham ficado abaixo dos 39%. Desta feita, a direita esconde-se num mínimo histórico de 33,6%. Do mesmo modo, o PS obteve o seu melhor resultado de sempre, acima das vitórias eleitorais de 1999 com Mário Soares e António Guterres. Contudo, provavelmente mais relevante, o diferencial entre os votos do PS e os da direita nunca tinha ultrapassado a fasquia dos 3% e depois de Domingo queda-se nos 11%. Exactamente a distância simétrica aquela que o PSD/CDS tinha tido, nas legislativas de há dois anos, face ao PS. O corolário de tudo isto é, naturalmente, que o conjunto da esquerda obteve uma maioria avassaladora e à direita a terra deslizou-lhe literalmente debaixo dos pés.
Para além de todas as leituras conjunturais que este resultado mobiliza, há um dado que está para além daquelas. Ficámos a saber que, no seu mínimo, a direita representa pouco mais do que 30% do eleitorado. Isto significa o fim do tabu segundo o qual o núcleo duro do eleitorado de direita, mesmo em contexto de derrota eleitoral, era superior ao da esquerda nas mesmas condições. Nos seus piores momentos, a direita resistiu sempre estoicamente em redor dos 40%, foi preciso chegarem os Drs. Durão e Portas para que se assistisse à hecatombe.
Claro que a hecatombe é, acima de tudo, consequência directa das políticas desastrosas do actual governo – da colagem do Dr. Durão Barroso à catástrofe que representou a intervenção norte-americana no Iraque, à obsessão contabilística que paralisou o país, passando pela secundarização do objectivo emprego, que deveria ser a prioridade das prioridades. Por tudo isto, os portugueses aproveitaram as eleições de Domingo para mostrar um enorme cartão amarelo ao actual governo.
Mas, o resultado de Domingo revelou que, para além do descontentamento dos portugueses com as políticas do governo, há um enorme descontentamento entre os próprios eleitores do PSD, não apenas com as políticas, mas, também, com a dimensão política da governação. O facto do PSD governar coligado com um partido da direita radical, não só tem um efeito pernicioso em áreas fundamentais da governação como tem contaminado a própria identidade programática do principal partido do governo, que se vê progressivamente empurrado para a direita.
No meio de tudo isto, não deixa de ser curioso que quando, há quase um ano, Ferro Rodrigues acusou o governo de ser dominado por um pequeno partido de direita radical, isso tenha sido visto como um erro colossal, por descentrar o ataque no Dr. Durão Barroso. Afinal, esse acabou por ser o tema central desta campanha e, depois dos resultados devastadores de Domingo, foi a própria ideia de coligação que passou a ser questionada por sectores importantes do PSD. Até porque na verdade estas eleições têm dois derrotados: as políticas do Dr. Durão Barroso e o próprio PSD, que tinha 9 eurodeputados e passou a ter 7, ao mesmo tempo que o CDS mantém os 2 que já tinha. À mesa das negociações quem ganhou, mais uma vez, foi o Dr. Portas e quem, por consequência directa, continua a perder são os portugueses que se vêem arrastados para as ruas da amargura pelo governo incompetentemente mais à direita que já tiveram.

PS
Ao longo dos últimos quatro meses tive o privilégio de trabalhar de perto com o Prof. António Sousa Franco. Desses tempos guardarei a memória da sua inteligência precisa, do seu humor inesperado e de um fascinante conversador. No entanto, acima de tudo, guardarei os ensinamentos de quem face a todas as agruras da vida política não virou a cara à luta, quando fazê-lo era mais fácil. Num momento em que a actividade política é cada vez mais ingrata e mais desprestigiada mas, também, por isso, mais necessária, o exemplo do Prof. Sousa Franco e a coragem da Drª Matilde Sousa Franco são um sinal de esperança.
artigo publicado na Capital