O Lamaçal
A notícia apareceu um pouco por todo o lado nos últimos dias: “filho de Leonor Beleza preso por envolvimento em tráfico de droga”. Assim mesmo, umas vezes discretamente no interior dos jornais, outras em letras garrafais de manchetes estridentes, devidamente secundarizadas pelos noticiários televisivos. Em todos os casos foi sendo sublinhado como elemento central da notícia, não o tráfico de droga, mas, sim, a maternidade do suspeito.
É certo que notícias deste tipo increvem-se numa tendência com algum histórico entre nós. Basta recordar o tempo em que, devidamente estimulados pelo Dr. Portas, os telejornais andavam atrás dos assaltos levados a cabo por “gangs de africanos”. Aí o que importava sublinhar também não era o crime, mas, essencialmente, a etnia de quem o praticava. Agora, neste caso, a discriminação com base na cor da pele é substituída pela mobilização de duas características perversas da sociedade portuguesa – o familialismo e o desprestígio da classe política.
Antes de mais, o familialismo. Essa tendência típica dos países mediterrâneos para desindividualizar os cidadãos e olhar para eles, na maior parte das situações, como parte duma família, de cuja esfera só dificilmente se autonomizam – o fulano que é filho de Sicrano ou sobrinho de Beltrano. É verdade que este fenómeno, pelos vínculos de solidariedade mais intensos que proporciona, quando comparado com outras sociedades, é responsável, em muitas situações, por um maior bem estar e pelo desenvolvimento de redes de apoio que, caso contrário, não existiriam. Contudo, funciona simultaneamente como a “desculpa” para que publicamente cada um de nós não seja visto, por exemplo pelo Estado, como um indivíduo que deve autonomamente exercer os seus direitos e arcar com as suas responsabilidades (naturalmente também criminais)
A invocação da maternidade do suspeito para título da notícia, um facto que não tem nenhuma relevância, prende-se precisamente com esta tendência nacional para a menorização dos indivíduos face à sua família de origem. Menorização que, nuns casos é verdade, funciona para o bem, mas que tem naturalmente um reverso da medalha: a diminuição da autonomia individual de cada um.
Aliás, importa sempre saber se, caso as notícias se provarem falsas, alguém ressarcirá os atingidos pelos danos causados. E, pelo contrário, se se provarem verdadeiras, a que propósito deve alguém pagar pelos actos de um familiar, que é maior e supõe-se vacinado.
Claro que se a mãe do suspeito fosse uma cidadã anónima a notícia não surgiria. Acontece que Leonor Beleza é política e haverá poucos grupos na nossa sociedade que mobilizem tanto desrespeito e desconfiança como esta classe. O descrédito da classe política aos olhos do cidadão comum faz com que, até prova em contrário, um político seja visto como presumível culpado. Logo, em todos os crimes, designadamente os mais hediondos, nada como o envolvimento directo ou indirecto de um político para satisfazer os apetites mais insaciáveis e perversos da opinião pública.
No ranking da desconfiança pública, a classe política ameaça competir de perto com os “gangs de africanos”. E enquanto isto acontece, com um contributo decisivo de muitos meios de comunicação social, é o próprio regime democrático que fica ferido nos seus alicerces. Meios de comunicação livres são, sabemo-lo de há muito, elementos essenciais para a boa saúde das democracias liberais. Do mesmo modo que meios de comunicação social que potenciam e amplificam os sentimentos mais perversos latentes na sociedade são armas apontadas à solidez dos regimes democráticos.
No meio de tudo isto, convém termos presente que a única coisa que é relevante e elementar numa sociedade com um mínimo de dignidade é, por um lado, a discrição quanto à identidade de presumíveis suspeitos de qualquer crime e, por outro, não menos importante, o respeito e a dissociação dos seus familiares face a esses mesmos actos. Por isso a dúvida começa a ser se estamos todos a caminhar para um enorme lamaçal, ou se já estamos mesmo envolvidos nele e a fazer esforços, mais ou menos inglórios, é verdade, para dele sairmos.
artigo publicado na Capital
É certo que notícias deste tipo increvem-se numa tendência com algum histórico entre nós. Basta recordar o tempo em que, devidamente estimulados pelo Dr. Portas, os telejornais andavam atrás dos assaltos levados a cabo por “gangs de africanos”. Aí o que importava sublinhar também não era o crime, mas, essencialmente, a etnia de quem o praticava. Agora, neste caso, a discriminação com base na cor da pele é substituída pela mobilização de duas características perversas da sociedade portuguesa – o familialismo e o desprestígio da classe política.
Antes de mais, o familialismo. Essa tendência típica dos países mediterrâneos para desindividualizar os cidadãos e olhar para eles, na maior parte das situações, como parte duma família, de cuja esfera só dificilmente se autonomizam – o fulano que é filho de Sicrano ou sobrinho de Beltrano. É verdade que este fenómeno, pelos vínculos de solidariedade mais intensos que proporciona, quando comparado com outras sociedades, é responsável, em muitas situações, por um maior bem estar e pelo desenvolvimento de redes de apoio que, caso contrário, não existiriam. Contudo, funciona simultaneamente como a “desculpa” para que publicamente cada um de nós não seja visto, por exemplo pelo Estado, como um indivíduo que deve autonomamente exercer os seus direitos e arcar com as suas responsabilidades (naturalmente também criminais)
A invocação da maternidade do suspeito para título da notícia, um facto que não tem nenhuma relevância, prende-se precisamente com esta tendência nacional para a menorização dos indivíduos face à sua família de origem. Menorização que, nuns casos é verdade, funciona para o bem, mas que tem naturalmente um reverso da medalha: a diminuição da autonomia individual de cada um.
Aliás, importa sempre saber se, caso as notícias se provarem falsas, alguém ressarcirá os atingidos pelos danos causados. E, pelo contrário, se se provarem verdadeiras, a que propósito deve alguém pagar pelos actos de um familiar, que é maior e supõe-se vacinado.
Claro que se a mãe do suspeito fosse uma cidadã anónima a notícia não surgiria. Acontece que Leonor Beleza é política e haverá poucos grupos na nossa sociedade que mobilizem tanto desrespeito e desconfiança como esta classe. O descrédito da classe política aos olhos do cidadão comum faz com que, até prova em contrário, um político seja visto como presumível culpado. Logo, em todos os crimes, designadamente os mais hediondos, nada como o envolvimento directo ou indirecto de um político para satisfazer os apetites mais insaciáveis e perversos da opinião pública.
No ranking da desconfiança pública, a classe política ameaça competir de perto com os “gangs de africanos”. E enquanto isto acontece, com um contributo decisivo de muitos meios de comunicação social, é o próprio regime democrático que fica ferido nos seus alicerces. Meios de comunicação livres são, sabemo-lo de há muito, elementos essenciais para a boa saúde das democracias liberais. Do mesmo modo que meios de comunicação social que potenciam e amplificam os sentimentos mais perversos latentes na sociedade são armas apontadas à solidez dos regimes democráticos.
No meio de tudo isto, convém termos presente que a única coisa que é relevante e elementar numa sociedade com um mínimo de dignidade é, por um lado, a discrição quanto à identidade de presumíveis suspeitos de qualquer crime e, por outro, não menos importante, o respeito e a dissociação dos seus familiares face a esses mesmos actos. Por isso a dúvida começa a ser se estamos todos a caminhar para um enorme lamaçal, ou se já estamos mesmo envolvidos nele e a fazer esforços, mais ou menos inglórios, é verdade, para dele sairmos.
artigo publicado na Capital
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