quarta-feira, junho 30, 2004

Beleza Pura

"As muito feias que me perdoem, mas a beleza é fundamental". Assim começa um poema de Vinicius de Moraes, "Retrato de Mulher", onde, por detrás duma aparente misoginia, se esconde um princípio em que assenta o espanto com o mundo: sabermos deitar um olhar simples sobre as coisas que se deixam ver. Entre elas, naturalmente a beleza. Quando olho para as fotografias de Sophia de Mello Breyner Andresen que foram enchendo os jornais dos últimos dias, o que delas retenho é precisamente uma beleza essencial, fundamental. Uma beleza quase absoluta em todas as idades e que, nas imagens que vão caminhando lado a lado com a sua vida, parecia sempre contaminar tudo o resto. Lembro-me aliás de, não há muito tempo, percorrendo a excelente fotobiografia de Ruben A., reparar que em todas as imagens de grupo, onde estavam sempre muitas das mulheres bonitas que então havia (Menez, Isabel da Nóbrega, por exemplo), se destacava sempre a luz altiva da beleza toda branca de Sophia. Uma beleza resplandecente que paradoxalmente parecia simétrica à das suas palavras. Onde as fotografias revelavam distância, as palavras que juntava como, não será exagerado dizer, ninguém, surgiam leves como que a espelhar as coisas simples e próximas. É por isso que o que hoje guardo da sua imagem é precisamente a junção dessas duas belezas – a face duma brancura fria e as palavras duma singeleza destilada – numa poesia que era feita sem "vestígios de impureza". Aliás, era a própria Sophia que dizia, "sempre me espantou a beleza das coisas. Sempre me maravilhou, me ajudou a viver. A beleza não é um adorno, é um elemento fundamental da vida e uma necessidade fundamental."
Em língua portuguesa, depois de Alberto Caeiro e juntamente com Eugénio de Andrade, ninguém escreveu do mesmo modo sobre o espanto infantil com as coisas do mundo. O aspecto distintivo da obra de Sophia foi a capacidade ímpar de escrever sobre o essencial – o brilho das coisas lá fora, as manhãs, as praias e o mar – e, acima de tudo, a capacidade para o fazer com palavras simples, que aparentavam não serem pensadas. Mas, por detrás dessa simplicidade elementar escondiam-se termos adultos, emancipados de uma visão cerebral da realidade. E, na literatura como no resto, há poucos exercícios mais difíceis do que simplificar o que é, em si, complexo. Destilada, parece-me ser este o termo exacto para descrever a poesia de Sophia. Uma poesia do essencial, da simplicidade e da economia das palavras.
Na sexta-feira passada, dia em que Sophia nos deixou, num fim de tarde tardio numa das Ilhas dos Açores, numa praia vazia como quase só aqui ainda existe, encontrei, por feliz coincidência, as ondas que chegavam de um verde liso, umas a seguir às outras, "tombando ininterruptamente" em paredes prontas a serem cortadas. Sophia não fazia surf e provavelmente nunca viveu a admiração absoluta do deslizar em paredes de água, numa energia perfeita que nos traz do mar à terra com uma satisfação indescritível. Mas eu olho para a sua poesia e, para além de tudo o resto, vejo-a sempre como uma metáfora perfeita das ondas no mar e do prazer do surf – que não é comparável com nenhum outro. Quando regressado daquele fim de tarde de surf perfeito ali nos Areais, entre a Ribeira Grande e Rabo de Peixe, apenas com um dos bons amigos, soube da notícia da morte de Sophia, não pude deixar de fixar nas imagens que ainda trazia frescas e claras os mesmíssimos puro espaço e lúcida unidade que estão em todos os lugares da sua obra.
"Quando eu morrer voltarei para buscar os instantes que não vivi junto ao mar", escreveu um dia Sophia. A mim, a sua beleza pura serve-me também para suportar os momentos que não vivo junto ao mar e em que não posso usufruir da "felicidade máxima de tomar banho entre os rochedos". Nas ondas do mar. A poesia não muda o mundo, nem muito menos faz de nós pessoas melhores. Serve apenas para nos ajudar a viver. E isso, como as ondas que apanhamos no surf, é tudo.
artigo publicado em a Capital