O País Pirata
Com particular intensidade já lá vai mais de um ano, o país anda num processo lento de apodrecimento. Sim, isso mesmo. Apodrecimento, decomposição lenta das suas características essenciais, das suas instituições. Até que ponto este processo é definitivo é que está ainda por saber. É natural que seja difícil identificar uma causa única que nos tenha trazido até aqui. Como em todos os fenómenos complexos, há sempre um conjunto de causas explicativas. Não será, por isso, de excluir que o estado a que chegámos resulte, entre outros factores, de sermos uma democracia menos institucionalizada do que todos nós pensávamos; de termos meios de comunicação social que agem dentro de uma alegre e sobranceira impunidade; e dos agentes institucionais dos quais depende o regular funcionamento da democracia se revelarem manifesta e objectivamente incapazes de desempenharem as funções que lhes competem. Com o panorama que vivemos, é natural que os portugueses lancem um olhar entre o cínico e o fársico sobre as suas instituições e o regime que estas suportam.
Hoje, podemos ter maior ou menor consciência disso, mas a maioria dos portugueses confia muito pouco nas instituições do regime – do sistema político-partidário às diversas instituições do Estado de Direito, desde o Parlamento ao sistema judicial. Como recordam, aliás, diversos estudos de opinião, ao mesmo tempo que continuamos a achar que a democracia é o melhor de todos os sistemas, paradoxalmente confiamos pouco nas instituições da nossa democracia. Resta saber se esta opção pela democracia não é essencialmente filha do desenvolvimento e do crescimento económico dos últimos trinta anos, mais do que do regime em si. É que se assim for, se à desconfiança institucional adicionarmos um conjunto de anos sucessivos, como aqueles que agora vivemos, em que a riqueza do país regrediu, podemos ter um seríssimo problema, que não é resolúvel com futebol, TVI, revistas cor-de-rosa e hipermercados.
Todo este cenário era já de si complexo, mas com quase dois anos do chamado “caso Casa Pia” tudo se complicou um pouco mais. Não só o processo ameaça todos os dias ser a gota que fará “transbordar o copo” da boa saúde institucional, como serviu também para dar visibilidade ao que de muito mau já existia, ainda que com pouca visibilidade. Nos dois anos que, com flutuações mediáticas, já leva, o caso Casa Pia conseguiu, não apenas somar vítimas umas atrás das outras, mas, também, produzir abalos institucionais que todos os dias nos surpreendem, se nada mais por serem sempre mais violentos que os anteriores. No meio de tudo isto não deixa, por isso, de ser surpreendente que, ao longo deste tempo, a única resposta dada pelos agentes com mais responsabilidade no sistema democrático tenha sido a de tomar como “normal funcionamento da justiça” tudo aquilo que se tem passado.
O episódio das cassetes alegadamente roubadas ao alegado jornalista é mais um momento desta opereta, que não fora trágica serviria de certo para arrancar sentidos sorrisos a muita gente. Uma coisa era evidente há já largos meses: assistia-se a frequentes violações do segredo de justiça, levadas a cabo por meios de comunicação seleccionados e dirigida a alvos muito bem definidos. As transcrições das cassetes piratas que agora surgem, servem, pelo menos, para confirmar quais eram os alvos, para elucidar o que faltava sobre os meios utilizados e para desmascarar alguns dos agentes. É por isso que depois de todos os anteriores episódios de violação do segredo de justiça e após a sequência incompreensível de erros processuais e de fragilidades em que assenta o processo, não deixa de ser, no mínimo espantoso, que desta feita, e mais uma vez, o senhor Procurador se proponha investigar as fugas de informação, agora do seu próprio gabinete, propondo-se, como tal, ser juiz em causa própria.
Com o clima que se instalou, não é só a cassete alegadamente roubada que é pirata, é todo o país que se está a tornar pirata. Este episódio, a somar a todos os outros, só revela que, com uma preciosa ajuda do processo Casa Pia, caminhamos numa espiral imparável em direcção à degradação do regime, pelo que é necessário que alguém com legitimidade democrática aja enquanto é ainda tempo. Daqui a poucos dias pode ser irremediavelmente tarde demais. Tarde demais para todos. E tarde demais para que seja possível apurar a verdade total e absoluta sobre os crimes de pedofilia e sobre o "caso Casa Pia". Até porque, até agora, parece que nos afastamos todos os dias da verdade e nos aproximamos de uma dúvida: Entre mediatismos insuportáveis, protagonismos pessoais abjectos e campanhas populistas ignóbeis, sobra alguém interessado em descobrir a verdade sobre a pedofilia em Portugal?
publicado na Capital
Hoje, podemos ter maior ou menor consciência disso, mas a maioria dos portugueses confia muito pouco nas instituições do regime – do sistema político-partidário às diversas instituições do Estado de Direito, desde o Parlamento ao sistema judicial. Como recordam, aliás, diversos estudos de opinião, ao mesmo tempo que continuamos a achar que a democracia é o melhor de todos os sistemas, paradoxalmente confiamos pouco nas instituições da nossa democracia. Resta saber se esta opção pela democracia não é essencialmente filha do desenvolvimento e do crescimento económico dos últimos trinta anos, mais do que do regime em si. É que se assim for, se à desconfiança institucional adicionarmos um conjunto de anos sucessivos, como aqueles que agora vivemos, em que a riqueza do país regrediu, podemos ter um seríssimo problema, que não é resolúvel com futebol, TVI, revistas cor-de-rosa e hipermercados.
Todo este cenário era já de si complexo, mas com quase dois anos do chamado “caso Casa Pia” tudo se complicou um pouco mais. Não só o processo ameaça todos os dias ser a gota que fará “transbordar o copo” da boa saúde institucional, como serviu também para dar visibilidade ao que de muito mau já existia, ainda que com pouca visibilidade. Nos dois anos que, com flutuações mediáticas, já leva, o caso Casa Pia conseguiu, não apenas somar vítimas umas atrás das outras, mas, também, produzir abalos institucionais que todos os dias nos surpreendem, se nada mais por serem sempre mais violentos que os anteriores. No meio de tudo isto não deixa, por isso, de ser surpreendente que, ao longo deste tempo, a única resposta dada pelos agentes com mais responsabilidade no sistema democrático tenha sido a de tomar como “normal funcionamento da justiça” tudo aquilo que se tem passado.
O episódio das cassetes alegadamente roubadas ao alegado jornalista é mais um momento desta opereta, que não fora trágica serviria de certo para arrancar sentidos sorrisos a muita gente. Uma coisa era evidente há já largos meses: assistia-se a frequentes violações do segredo de justiça, levadas a cabo por meios de comunicação seleccionados e dirigida a alvos muito bem definidos. As transcrições das cassetes piratas que agora surgem, servem, pelo menos, para confirmar quais eram os alvos, para elucidar o que faltava sobre os meios utilizados e para desmascarar alguns dos agentes. É por isso que depois de todos os anteriores episódios de violação do segredo de justiça e após a sequência incompreensível de erros processuais e de fragilidades em que assenta o processo, não deixa de ser, no mínimo espantoso, que desta feita, e mais uma vez, o senhor Procurador se proponha investigar as fugas de informação, agora do seu próprio gabinete, propondo-se, como tal, ser juiz em causa própria.
Com o clima que se instalou, não é só a cassete alegadamente roubada que é pirata, é todo o país que se está a tornar pirata. Este episódio, a somar a todos os outros, só revela que, com uma preciosa ajuda do processo Casa Pia, caminhamos numa espiral imparável em direcção à degradação do regime, pelo que é necessário que alguém com legitimidade democrática aja enquanto é ainda tempo. Daqui a poucos dias pode ser irremediavelmente tarde demais. Tarde demais para todos. E tarde demais para que seja possível apurar a verdade total e absoluta sobre os crimes de pedofilia e sobre o "caso Casa Pia". Até porque, até agora, parece que nos afastamos todos os dias da verdade e nos aproximamos de uma dúvida: Entre mediatismos insuportáveis, protagonismos pessoais abjectos e campanhas populistas ignóbeis, sobra alguém interessado em descobrir a verdade sobre a pedofilia em Portugal?
publicado na Capital
<< Home