Diz-me com quem andas
Há sensivelmente dez anos, quando Tony Blair iniciou o percurso que o levaria a primeiro-ministro britânico, poucos se atreveriam a antecipar o que veio a acontecer. Com uma agenda política baseada na vontade de construir um New Labour, capaz de olhar para o futuro, quebrando os imobilismos que tinham afastado o partido do poder por mais de quinze anos e com vontade de romper as resistências de um aparelho arcaico que tolhiam a sua acção, Tony Blair parecia preconizar um projecto de esquerda moderna. Para além do mais com um sustentáculo ideológico com uma densidade pouco comum na política partidária. No entanto, logo na primeira campanha eleitoral, Tony Blair começou a defraudar as expectativas criadas, dando a entender, em muitos momentos, que estava disposto a fazer cedências à demagogia.
Hoje, depois de sete anos de governo, Tony Blair combina, paradoxalmente, um saldo positivo ao nível da política interna e uma prestação desastrosa quer em termos de política externa, quer, não menos importante, na dimensão simbólica da sua acção.
Pese embora, uma performance muito interessante ao nível económico, que faz com que mesmo quando outros países vivem uma profunda recessão, o Reino Unido continue a apresentar uma evolução positiva do PIB – muito por força da acção do seu Ministro das Finanças e rival, umas vezes mais, outras vezes menos assumido, Gordon Brown; uma diminuição impressiva e histórica do desemprego; a garantia do salário mínimo e, ao nível político, um processo de devolução de poderes à Escócia e Gales, bem como a introdução de alguma proporcionalidade no sistema eleitoral britânico, Tony Blair chega a 2004 com uma relação quase irremediavelmente estragada com quase todos os sectores da esquerda.
Com o posicionamento face à guerra no Iraque, e a forma como adoptou um seguidismo acrítico face a George Bush, levando-o mesmo a ser agente activo da história de mentiras em que assentou aquela intervenção, Blair conseguiu contagiar o seu património político interno de forma quase irremediável. Mas, quando as coisas vão por mau caminho, normalmente podem sempre piorar ainda um pouco mais. E na verdade, depois da aproximação difícil de compreender com base em qualquer critério de racionalidade a George Bush, a Blair não lhe ocorreu nada melhor do que, na “velha Europa”, aproximar-se de Silvio Berlusconi, esse personagem de opereta que governa Itália. Tudo começou com uma aproximação política, mas este ano, como se isso não bastasse, a família Blair levou a coisa mais longe e aproveitou para passar férias na sumptuosa e nova-rica mansão de Berlusconi na Sardenha, ocupando um dos 27 quartos da mesma. Se a proximidade política já é suficientemente suspeita, que significado dar a uma amizade entre um primeiro-ministro trabalhista e o senhor Berlusconi? É que cada pessoa passa férias com quem lhe aprouver, com um primeiro-ministro é diferente.
Há uma conhecida tendência de certa esquerda para, quando quer dar ares de moderna, deixar deslumbrar-se com a direita social, política e económica, como se a modernidade dependesse de ser-se um pouco menos de esquerda. Acontece que mesmo à luz desse critério não é possível avaliar a relação de Blair com o Cavalieri. Berlusconi está para além de tudo isso. Como titulava o insuspeito Economist na capa da edição publicada por altura das últimas eleições legislativas italianas, "Berlusconi é desadequado para governar a Itália" e é-o, naturalmente não por ser de direita, mas, sim, por ser o resultado de uma mistura explosiva de ligações entre futebol, meios de comunicação social, enriquecimento com base em favorecimento partidário – ainda durante a Itália do período anterior à “operação mãos limpas” –, sendo que tudo isto é condimentado com uma personalidade com evidentes sinais de desequilíbrio e instabilidade. Berlusconi não é alguém frequentável e quando justificadamente, também em Portugal, se fala muito de populismo, o primeiro-ministro italiano serve como referência absoluta disso mesmo e como medida do que não se deve ser, nem fazer.
Por tudo isto, a amizade de Blair com Berlusconi ao mesmo tempo que descredibiliza o que ainda sobrava da sua imagem política, tem um alcance bastante mais relevante. Prejudica seriamente a recuperação de parte do seu património político. A esquerda do futuro tem de se construir, em larga medida, pela defesa intransigente dos mecanismos da democracia liberal, do rigor e da legalidade e pela oposição radical ao que Berlusconi é e representa. Ao estabelecer pontes que vão muito para além da mera relação institucional com o Cavalieri, Blair deu uma machadada final no que restava do seu projecto, até porque na política quem se é depende muito de com quem se anda.
publicado na Capital
Hoje, depois de sete anos de governo, Tony Blair combina, paradoxalmente, um saldo positivo ao nível da política interna e uma prestação desastrosa quer em termos de política externa, quer, não menos importante, na dimensão simbólica da sua acção.
Pese embora, uma performance muito interessante ao nível económico, que faz com que mesmo quando outros países vivem uma profunda recessão, o Reino Unido continue a apresentar uma evolução positiva do PIB – muito por força da acção do seu Ministro das Finanças e rival, umas vezes mais, outras vezes menos assumido, Gordon Brown; uma diminuição impressiva e histórica do desemprego; a garantia do salário mínimo e, ao nível político, um processo de devolução de poderes à Escócia e Gales, bem como a introdução de alguma proporcionalidade no sistema eleitoral britânico, Tony Blair chega a 2004 com uma relação quase irremediavelmente estragada com quase todos os sectores da esquerda.
Com o posicionamento face à guerra no Iraque, e a forma como adoptou um seguidismo acrítico face a George Bush, levando-o mesmo a ser agente activo da história de mentiras em que assentou aquela intervenção, Blair conseguiu contagiar o seu património político interno de forma quase irremediável. Mas, quando as coisas vão por mau caminho, normalmente podem sempre piorar ainda um pouco mais. E na verdade, depois da aproximação difícil de compreender com base em qualquer critério de racionalidade a George Bush, a Blair não lhe ocorreu nada melhor do que, na “velha Europa”, aproximar-se de Silvio Berlusconi, esse personagem de opereta que governa Itália. Tudo começou com uma aproximação política, mas este ano, como se isso não bastasse, a família Blair levou a coisa mais longe e aproveitou para passar férias na sumptuosa e nova-rica mansão de Berlusconi na Sardenha, ocupando um dos 27 quartos da mesma. Se a proximidade política já é suficientemente suspeita, que significado dar a uma amizade entre um primeiro-ministro trabalhista e o senhor Berlusconi? É que cada pessoa passa férias com quem lhe aprouver, com um primeiro-ministro é diferente.
Há uma conhecida tendência de certa esquerda para, quando quer dar ares de moderna, deixar deslumbrar-se com a direita social, política e económica, como se a modernidade dependesse de ser-se um pouco menos de esquerda. Acontece que mesmo à luz desse critério não é possível avaliar a relação de Blair com o Cavalieri. Berlusconi está para além de tudo isso. Como titulava o insuspeito Economist na capa da edição publicada por altura das últimas eleições legislativas italianas, "Berlusconi é desadequado para governar a Itália" e é-o, naturalmente não por ser de direita, mas, sim, por ser o resultado de uma mistura explosiva de ligações entre futebol, meios de comunicação social, enriquecimento com base em favorecimento partidário – ainda durante a Itália do período anterior à “operação mãos limpas” –, sendo que tudo isto é condimentado com uma personalidade com evidentes sinais de desequilíbrio e instabilidade. Berlusconi não é alguém frequentável e quando justificadamente, também em Portugal, se fala muito de populismo, o primeiro-ministro italiano serve como referência absoluta disso mesmo e como medida do que não se deve ser, nem fazer.
Por tudo isto, a amizade de Blair com Berlusconi ao mesmo tempo que descredibiliza o que ainda sobrava da sua imagem política, tem um alcance bastante mais relevante. Prejudica seriamente a recuperação de parte do seu património político. A esquerda do futuro tem de se construir, em larga medida, pela defesa intransigente dos mecanismos da democracia liberal, do rigor e da legalidade e pela oposição radical ao que Berlusconi é e representa. Ao estabelecer pontes que vão muito para além da mera relação institucional com o Cavalieri, Blair deu uma machadada final no que restava do seu projecto, até porque na política quem se é depende muito de com quem se anda.
publicado na Capital
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