As ondas que o barco fez
Quando se discute a questão do aborto não é apenas esta que está em causa, mas todo um mundo para a qual remete. Entre nós, foi assim no passado, nomeadamente quando com António Guterres o PS se envolveu num jogo de equívocos que, em larga medida, levou a que num cenário de retumbante derrota da direita nas legislativas de 1999, não tenha conseguido alcançar a maioria absoluta e é-o agora, novamente, com a chegada do barco da organização "Women on Waves".
Por estranho que possa parecer, há uma semana, a vinda do barco tinha como consequência previsível a divisão no campo dos defensores da despenalização da interrupção voluntária da gravidez. O tom e a forma como este movimento procura introduzir a questão implicam uma radicalização das posições, extremando-as e afastando o debate da moderação. Contudo, e isso é já sabido, debate moderado em torno do aborto é uma contradição em termos, pelo que melhor é travá-lo do modo que vai sendo possível. Ainda assim, naturalmente que, também em Portugal, o resultado da acção de propaganda da organização holandesa seria provocar cisões entre todos os que consideram a legislação portuguesa violentadora do direito de optar. Espantosamente, e por força da posição absurda do Governo português, a vinda do barco acabou por produzir dois efeitos inesperados. Por um lado, alcançou uma publicidade que era, à partida, impensável e por outro, conseguiu, ao mesmo tempo, unir os defensores da despenalização e provocar abalos na coesão dos que são favoráveis à criminalização das mulheres que interrompem a gravidez.
Aliás, a forma crescentemente atabalhoada como, à medida que o barco se aproximava, o PSD foi reagindo à situação é sintomática do desconforto que o tema gera na coligação. Depois da trapalhada e da sequência de declarações contraditórias que, em Dezembro último, o PSD e o CDS fizeram aquando do Julgamento da Maia, a vinda do barco serviu novamente para expor a insustentabilidade da actual legislação sobre o aborto. Pelo caminho, ficou exemplificado como, entre nós, a direita, ao colocar a possibilidade de optar num domínio muito sensível e dramático da vida individual sob a tutela das suas opções morais, mais uma vez engaveta o liberalismo que tanto gosta de proclamar. Entre sociedade aberta e sociedade fechada, em Portugal a direita opta sempre pelo fechamento.
No entanto, a gestão da vinda do barco por parte do Governo remete não apenas para a questão do aborto, mas, também, para a própria natureza da coligação. Com o barco não foi apenas o problema das mulheres que vêem criminalizada a sua opção que chegou de novo, foi, simultaneamente, o dilema em que vive o entendimento PSD/CDS que reganhou visibilidade.
É verdade que a opção tomada pelo governo de proibir a atracagem do Borndiep parece, à primeira vista, estapafúrdia. Afinal, como é sabido, proibicionismos deste género tem normalmente um efeito precisamente contrário ao desejado. Contudo, se se considerar o lugar do PP no seio da coligação, é possível encontrar um racional por detrás da decisão governamental. Convém recordar que foi o Dr. Portas, Ministro do Mar, que geriu a vinda do "Women on Waves" com um aparato inusitado e desproporcionado, optando por um proibicionismo que deu uma visibilidade inesperada às actividades da organização holandesa. Esta atitude insere-se numa agenda política de um dos parceiros da coligação que assenta numa estratégia clara. O PP precisa de assegurar o seu espaço vital e esse espaço vital, na economia dos votos, só pode assentar num nicho eleitoral: uma minoria para onde confluem todos os reaccionarismos, facilmente mobilizada por posicionamentos simbólicos. A história repete-se. Quando chega a Agosto, o Dr. Portas aproveita o número reduzido de notícias para ocupar o espaço mediático com os combates que lhe convém protagonizar. Há uns anos era a demagogia em torno da criminalidade, o ano passado, a polémica homenagem a Maggiolo Gouveia e este ano a proibição do “Women on Waves”. Resta apenas saber o que inventará o Dr. Portas daqui a um ano, de modo a não se tornar uma irrelevância política.
Acontece que ao PSD e ao conjunto do governo, as causas do PP não são nada convenientes. Quanto mais o Dr. Portas capitaliza nos temas radicais e mobilizadores do extremo direito do eleitorado, mais o governo perde nos apoios do eleitorado moderado. E, assim, uma vez mais fica provado que o que é bom para o Dr. Portas é mau para o governo e o que é mau para o Dr. Portas é bom para o governo. É que com a lógica que está por detrás da proibição da entrada em águas nacionais do "Women on Waves" é todo o governo que se vê empurrado para a direita e contagiado pelas causas que servem apenas ao parceiro menor da coligação. Com o barco holandês chegou mais uma vez o dilema que enfrenta, desde o início, este governo. Ou encalha na direita, mantendo o CDS e o Dr. Portas a bordo ou, pelo contrário, tenta afastar-se em direcção ao centro, empurrando o Dr. Portas para o mar. O problema é que, a bordo ou no mar, o Dr. Portas provocará sempre rombos irreparáveis no casco de um barco que não tem parado de meter água.
publicado na Capital
Por estranho que possa parecer, há uma semana, a vinda do barco tinha como consequência previsível a divisão no campo dos defensores da despenalização da interrupção voluntária da gravidez. O tom e a forma como este movimento procura introduzir a questão implicam uma radicalização das posições, extremando-as e afastando o debate da moderação. Contudo, e isso é já sabido, debate moderado em torno do aborto é uma contradição em termos, pelo que melhor é travá-lo do modo que vai sendo possível. Ainda assim, naturalmente que, também em Portugal, o resultado da acção de propaganda da organização holandesa seria provocar cisões entre todos os que consideram a legislação portuguesa violentadora do direito de optar. Espantosamente, e por força da posição absurda do Governo português, a vinda do barco acabou por produzir dois efeitos inesperados. Por um lado, alcançou uma publicidade que era, à partida, impensável e por outro, conseguiu, ao mesmo tempo, unir os defensores da despenalização e provocar abalos na coesão dos que são favoráveis à criminalização das mulheres que interrompem a gravidez.
Aliás, a forma crescentemente atabalhoada como, à medida que o barco se aproximava, o PSD foi reagindo à situação é sintomática do desconforto que o tema gera na coligação. Depois da trapalhada e da sequência de declarações contraditórias que, em Dezembro último, o PSD e o CDS fizeram aquando do Julgamento da Maia, a vinda do barco serviu novamente para expor a insustentabilidade da actual legislação sobre o aborto. Pelo caminho, ficou exemplificado como, entre nós, a direita, ao colocar a possibilidade de optar num domínio muito sensível e dramático da vida individual sob a tutela das suas opções morais, mais uma vez engaveta o liberalismo que tanto gosta de proclamar. Entre sociedade aberta e sociedade fechada, em Portugal a direita opta sempre pelo fechamento.
No entanto, a gestão da vinda do barco por parte do Governo remete não apenas para a questão do aborto, mas, também, para a própria natureza da coligação. Com o barco não foi apenas o problema das mulheres que vêem criminalizada a sua opção que chegou de novo, foi, simultaneamente, o dilema em que vive o entendimento PSD/CDS que reganhou visibilidade.
É verdade que a opção tomada pelo governo de proibir a atracagem do Borndiep parece, à primeira vista, estapafúrdia. Afinal, como é sabido, proibicionismos deste género tem normalmente um efeito precisamente contrário ao desejado. Contudo, se se considerar o lugar do PP no seio da coligação, é possível encontrar um racional por detrás da decisão governamental. Convém recordar que foi o Dr. Portas, Ministro do Mar, que geriu a vinda do "Women on Waves" com um aparato inusitado e desproporcionado, optando por um proibicionismo que deu uma visibilidade inesperada às actividades da organização holandesa. Esta atitude insere-se numa agenda política de um dos parceiros da coligação que assenta numa estratégia clara. O PP precisa de assegurar o seu espaço vital e esse espaço vital, na economia dos votos, só pode assentar num nicho eleitoral: uma minoria para onde confluem todos os reaccionarismos, facilmente mobilizada por posicionamentos simbólicos. A história repete-se. Quando chega a Agosto, o Dr. Portas aproveita o número reduzido de notícias para ocupar o espaço mediático com os combates que lhe convém protagonizar. Há uns anos era a demagogia em torno da criminalidade, o ano passado, a polémica homenagem a Maggiolo Gouveia e este ano a proibição do “Women on Waves”. Resta apenas saber o que inventará o Dr. Portas daqui a um ano, de modo a não se tornar uma irrelevância política.
Acontece que ao PSD e ao conjunto do governo, as causas do PP não são nada convenientes. Quanto mais o Dr. Portas capitaliza nos temas radicais e mobilizadores do extremo direito do eleitorado, mais o governo perde nos apoios do eleitorado moderado. E, assim, uma vez mais fica provado que o que é bom para o Dr. Portas é mau para o governo e o que é mau para o Dr. Portas é bom para o governo. É que com a lógica que está por detrás da proibição da entrada em águas nacionais do "Women on Waves" é todo o governo que se vê empurrado para a direita e contagiado pelas causas que servem apenas ao parceiro menor da coligação. Com o barco holandês chegou mais uma vez o dilema que enfrenta, desde o início, este governo. Ou encalha na direita, mantendo o CDS e o Dr. Portas a bordo ou, pelo contrário, tenta afastar-se em direcção ao centro, empurrando o Dr. Portas para o mar. O problema é que, a bordo ou no mar, o Dr. Portas provocará sempre rombos irreparáveis no casco de um barco que não tem parado de meter água.
publicado na Capital
<< Home