quarta-feira, setembro 29, 2004

O eterno mito do centro

De forma mais ou menos mitigada, saber se o Partido Socialista ia virar ou não ao centro foi uma discussão omnipresente na campanha interna para Secretário-Geral. Independentemente das profissões de fé de esquerdismo que, com maior ou menor intensidade, os três candidatos foram fazendo, a verdade é que uma das razões apontadas como responsável pelo potencial ganhador de José Sócrates foi o seu apelo ao centro. Os comentadores foram ajudando à festa, sublinhando reiteradamente esta ideia. Acontece que o tema do centro político é, muito provavelmente, dos mais geradores de equívocos na discussão política. Não apenas porque o centro existe quase exclusivamente na cabeça dos políticos, dos jornalistas e dos comentadores (se bem que em doses diferentes), mas, também, porque a sua invocação serve para iludir os aspectos que são relevantes para a construção de uma alternativa política.
De facto, a própria ideia de centro como lugar político é falaciosa. Se concebermos um eixo que vai da esquerda à direita, embora haja uma tendência generalizada para os eleitores se auto-posicionarem junto da zona central desse eixo, o mesmo já não acontece quando considerados temas políticos específicos. Como revela o volume “Portugal a votos”, organizado por André Freire, Marina Costa Lobo e Pedro Magalhães (ICS: 2004), os eleitores perante certos temas (por exemplo, o papel do Estado e dos serviços públicos) são maioritariamente de esquerda e noutros (por exemplo, imigração) são maioritariamente de direita, acabando o seu posicionamento individual por resultar num todo politicamente incoerente. Aliás, é sabido que em Portugal a valorização do eixo ideológico, esquerda/direita é mais fraca do que noutros países, nomeadamente quando comparada com a identificação partidária. Quer isto dizer que os portugueses, nas suas opções eleitorais, tendem a dar menos relevo à identificação ideológica do que aquele que dão à identificação partidária. E dar menos relevo não significa que são mais ou menos de esquerda, significa que essa dimensão não é determinante das suas opções eleitorais.
É também por isso que a capacidade de mobilização eleitoral de um partido com vocação de poder reside menos em apelar a um eleitorado de centro, que de facto sob uma forma pura não existe, e mais na capacidade de combinar discursos temáticos que mobilizem o eleitorado flutuante, que é aquele que decide as eleições. E para fazê-lo importa, sobretudo, apresentar um projecto que seja percepcionado pelos eleitores como se tratando de uma verdadeira alternativa, com compromissos determinados e contrastantes, quer no estilo, quer na substância. Aliás, quando os partidos de poder procuram, a todo o custo, não se comprometer com nada, procurando agradar a “gregos e troianos”, os eleitores normalmente desmobilizam e, como tem acontecido com intensidades diversas um pouco por toda a Europa, tendem a optar ou pela abstenção ou por partidos nos extremos do espectro partidário. Se há lição que o PS deveria retirar dos governos de António Guterres é precisamente essa. A indefinição quanto ao tipo de coligações sociais escolhidas, combinada com mensagens políticas suaves, mas contraditórias, é, no médio prazo, contraproducente para a construção de uma alternativa política.
É neste contexto que, após o Congresso do próximo fim-de-semana, o PS tem de enfrentar dois grandes desafios. Um primeiro que visa mobilizar a sua base militante e eleitoral e um segundo, cuja resposta assenta, em larga medida, no sucesso do primeiro, e que deve apontar para a mobilização do eleitorado flutuante. São dois desafios que requerem respostas, por vezes, contraditórias. Para responder ao primeiro há que manter a coerência ideológica e não cair na tentação de desvalorizar as dimensões simbólicas da actividade partidária (deste ponto de vista, será interessante saber o que fará José Sócrates nas manifestações do 25 de Abril e do 1º de Maio. Participará nelas, como aconteceu com a direcção do PS nos últimos anos, ou não?). Já para mobilizar o eleitorado flutuante importa revelar determinação na construção de uma alternativa de poder e não, a propósito de tudo, passar uma imagem de moderação e de vontade de compromisso com todos.
Se o PS cair no engodo de tomar como bom o eterno mito do centro, corre não apenas o risco de desmobilizar a sua base de apoio e perder o eleitorado flutuante, como também o de oferecer, no mercado dos votos, eleitores para os partidos à sua esquerda. Se assim acontecer, o PS sozinho nunca será maioritário. Como tal, a dose certa de moderação ideológica no discurso e de alternativa contrastante no projecto político é parte do segredo para colocar fim a quatro dolorosos anos de governos do PSD e do PP.
artigo publicado em A Capital, 29 de Setembro