O inefável Dr. Bagão
Foi uma herança pesada aquela deixada pelo Dr. Bagão Félix em dois anos e pouco nas áreas da Segurança Social e do Trabalho. O desemprego, que está perto de atingir meio milhão de portugueses, sem que se tenha assistido a um esboçar de reacção a este flagelo; uma ofensiva neo-liberal na legislação laboral, mais preocupada em enfrentar moinhos de vento do que os verdadeiros factores de imobilismo que persistem no mercado de trabalho; uma vontade obstinada de diminuir os direitos dos mais fracos, de que são exemplos as alterações ao subsídio de doença e o ataque ideológico, seguido de paralisia administrativa, ao rendimento mínimo garantido; a incapacidade de fazer aprovar uma lei orgânica do Ministério que, mesmo depois de contratações externas, só veria a luz do Diário da República com mais de dois anos de atraso e ironicamente no dia em que o novo/velho governo tomava posse. A tudo isto há que somar uma relação particularmente difícil com a Constituição da República. Será, porventura, por força desta herança que, dois meses depois, do Dr. Negrão só temos escutado um silêncio sepulcral.
Mesmo assim, e por incrível que possa parecer, o traço mais característico da passagem do Dr. Bagão pelo Trabalho e Segurança Social não foi nem a insensibilidade social da sua acção, nem a tentativa de desmantelamento do edifício social que tem sido construído, de forma cumulativa, nos últimos trinta anos. O que tornou o Dr. Bagão um caso à parte foi a forma como, em todos os momentos, recorreu a um discurso ultramontano, conservador e anacrónico para justificar as suas políticas. É que quando o Dr. Bagão fala, mesmo quando há laivos de insensibilidade neo-liberal, o essencial que se retém é invariavelmente um regresso a disputas ideológicas passadistas. Da invocação da família, para depois desinvestir nas políticas que promovem de facto o bem-estar daquela, a uma substituição de uma lógica de activação das políticas de solidariedade por um regresso ao assistencialismo de matriz caritativo, na sua acção estiveram presentes todos os elementos que caracterizam uma política social reaccionária. Por muito que se procure, dificilmente se encontrará na sua prática discursiva um elemento reformista com um horizonte de modernidade. Olhar para o passado parece ser sempre o seu lema.
Não é, aliás, certamente por acaso que isto acontece. Como sabemos, também do passado, a área social é um local privilegiado para a formação de poder, na medida em que nela se cruzam necessidades vitais (o trabalho e a segurança social) com os discursos eminentemente ideológicos. Foi precisamente essa a razão porque no período de formação do Estado Novo, a questão social foi tão valorizada e central para a definição ideológica do regime. O que o Dr. Bagão procurou fazer foi também isso: impregnar, a partir da área social, todo o Estado de uma nova, ainda que velha, cultura política.
Mas eis que, no meio da encruzilhada pela qual nos leva esta coligação, o Dr. Bagão viu-se feito em todo-poderoso Ministro da Fazenda. E enquanto o Dr. Santana ia avisando que o Estado não venderia mais anéis para falsificar as contas do défice, o Dr. Bagão aproveitou para dar ao país a receita a ser seguida para o Orçamento de Estado para 2005. Numa inédita declaração ao país, mas no seu estilo costumeiro, o Dr. Bagão aproveitou para anunciar duas coisas singelas: que o orçamento de Estado é como o de uma família e que os portugueses têm de trabalhar mais. Deixemos de lado o simplismo patético do exemplo, ou até mesmo as reminiscências salazarentas que se revelam na metáfora, e atentemos antes na tentativa de inversão do ónus do exemplo.
Há diversas lições que o Estado deve aprender com as famílias portuguesas. A primeira delas tem exactamente a ver com a opção que aquelas fizeram pelo investimento em detrimento da contenção da despesa. Naquilo que é, porventura, um dos indicadores mais sólidos do sucesso dos trinta anos de democracia, as famílias realizaram um esforço assinalável, e de difícil quantificação, por exemplo, de investimento privado na educação. Mesmo sem apoios estatais e com fracos recursos próprios, os portugueses viram na aposta na educação dos seus filhos, o mais eficaz dos mecanismos de mobilidade social. Basta um olhar atento à sociedade portuguesa para se perceber que, em todos os estratos sociais, a valorização simbólica da educação foi correspondida com um investimento do lado das famílias. Rara é a família que hesitou quando teve de optar entre fazer um acrescido esforço financeiro ou, em alternativa, os seus filhos não prosseguirem os estudos.
É que se as famílias fossem na conversa do Dr. Bagão e tivessem andado a fazer o que o Estado tem feito nos últimos três anos, não investiam na educação dos seus filhos, nem na protecção aos idosos, e muito menos na solidariedade aos mais necessitados e, essencialmente, toldadas pela miopia, não investiam no futuro – na ciência, na inovação e na qualificação. Aprenda, por isso, o Governo, na feitura do próximo orçamento de Estado, com o exemplo das famílias portuguesas, em lugar de optar por uma obsessão com a despesa que esquece o investimento e compromete o futuro. Pobres as famílias quando vêem o seu nome invocado em vão.
artigo publicado em A Capital, 14 de Setembro
Mesmo assim, e por incrível que possa parecer, o traço mais característico da passagem do Dr. Bagão pelo Trabalho e Segurança Social não foi nem a insensibilidade social da sua acção, nem a tentativa de desmantelamento do edifício social que tem sido construído, de forma cumulativa, nos últimos trinta anos. O que tornou o Dr. Bagão um caso à parte foi a forma como, em todos os momentos, recorreu a um discurso ultramontano, conservador e anacrónico para justificar as suas políticas. É que quando o Dr. Bagão fala, mesmo quando há laivos de insensibilidade neo-liberal, o essencial que se retém é invariavelmente um regresso a disputas ideológicas passadistas. Da invocação da família, para depois desinvestir nas políticas que promovem de facto o bem-estar daquela, a uma substituição de uma lógica de activação das políticas de solidariedade por um regresso ao assistencialismo de matriz caritativo, na sua acção estiveram presentes todos os elementos que caracterizam uma política social reaccionária. Por muito que se procure, dificilmente se encontrará na sua prática discursiva um elemento reformista com um horizonte de modernidade. Olhar para o passado parece ser sempre o seu lema.
Não é, aliás, certamente por acaso que isto acontece. Como sabemos, também do passado, a área social é um local privilegiado para a formação de poder, na medida em que nela se cruzam necessidades vitais (o trabalho e a segurança social) com os discursos eminentemente ideológicos. Foi precisamente essa a razão porque no período de formação do Estado Novo, a questão social foi tão valorizada e central para a definição ideológica do regime. O que o Dr. Bagão procurou fazer foi também isso: impregnar, a partir da área social, todo o Estado de uma nova, ainda que velha, cultura política.
Mas eis que, no meio da encruzilhada pela qual nos leva esta coligação, o Dr. Bagão viu-se feito em todo-poderoso Ministro da Fazenda. E enquanto o Dr. Santana ia avisando que o Estado não venderia mais anéis para falsificar as contas do défice, o Dr. Bagão aproveitou para dar ao país a receita a ser seguida para o Orçamento de Estado para 2005. Numa inédita declaração ao país, mas no seu estilo costumeiro, o Dr. Bagão aproveitou para anunciar duas coisas singelas: que o orçamento de Estado é como o de uma família e que os portugueses têm de trabalhar mais. Deixemos de lado o simplismo patético do exemplo, ou até mesmo as reminiscências salazarentas que se revelam na metáfora, e atentemos antes na tentativa de inversão do ónus do exemplo.
Há diversas lições que o Estado deve aprender com as famílias portuguesas. A primeira delas tem exactamente a ver com a opção que aquelas fizeram pelo investimento em detrimento da contenção da despesa. Naquilo que é, porventura, um dos indicadores mais sólidos do sucesso dos trinta anos de democracia, as famílias realizaram um esforço assinalável, e de difícil quantificação, por exemplo, de investimento privado na educação. Mesmo sem apoios estatais e com fracos recursos próprios, os portugueses viram na aposta na educação dos seus filhos, o mais eficaz dos mecanismos de mobilidade social. Basta um olhar atento à sociedade portuguesa para se perceber que, em todos os estratos sociais, a valorização simbólica da educação foi correspondida com um investimento do lado das famílias. Rara é a família que hesitou quando teve de optar entre fazer um acrescido esforço financeiro ou, em alternativa, os seus filhos não prosseguirem os estudos.
É que se as famílias fossem na conversa do Dr. Bagão e tivessem andado a fazer o que o Estado tem feito nos últimos três anos, não investiam na educação dos seus filhos, nem na protecção aos idosos, e muito menos na solidariedade aos mais necessitados e, essencialmente, toldadas pela miopia, não investiam no futuro – na ciência, na inovação e na qualificação. Aprenda, por isso, o Governo, na feitura do próximo orçamento de Estado, com o exemplo das famílias portuguesas, em lugar de optar por uma obsessão com a despesa que esquece o investimento e compromete o futuro. Pobres as famílias quando vêem o seu nome invocado em vão.
artigo publicado em A Capital, 14 de Setembro
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