quarta-feira, outubro 06, 2004

O cravo e a ferradura

Contrariando o que normalmente acontece, em que após as eleições os governos gozam de um merecido estado de graça, os portugueses sempre revelaram que não queriam o governo que, antes de fugir, o Dr. Durão lhes deu. Desde as sondagens feitas imediatamente após as eleições, àquelas publicadas quando o PS enfrentava a maior campanha de desacreditação de que foi alvo uma força política no Portugal democrático, o resultado foi invariavelmente um: a rejeição nas intenções de voto dos partidos da coligação. No único acto eleitoral entretanto ocorrido, o PSD e o PP coligados sofreram uma derrota estrondosa nas eleições europeias, alcançando o seu pior resultado eleitoral de sempre. Mas, algo de novo aconteceu nos últimos três meses.

Não só os portugueses continuam a rejeitar o governo, como tem ficado claro que, pura e simplesmente, Portugal não pode ter mais quatro anos com a dupla Santana e Portas a governar o país. Três meses têm sido suficientes para expor a gravidade do que se tem passado e que deve ser parado a tempo, sob pena de os danos se tornarem irreversíveis.

Mas, se é hoje inequívoca a rejeição da actual coligação, ainda não é claro qual o caminho alternativo para mobilizar os portugueses. Desse ponto de vista, o congresso do Partido Socialista representa uma responsabilidade e um dever para a liderança de José Sócrates. A responsabilidade de construir uma alternativa de poder, evitando o caminho fácil, mas inconsequente, do exercício do poder em alternância. Essa alternativa faz-se naturalmente de modernidade e de capacidade de encarar o futuro, mas faz-se simultaneamente com o peso simbólico do passado e com as lições que dele devemos saber retirar.

Há, a meu ver, uma lição que todos os socialistas deveriam retirar dos dois últimos conturbados anos da democracia portuguesa (mas porque não dizê-lo, todos os militantes de partidos políticos). Quando um partido é atacado injustamente, como o PS foi através dos ataques ignóbeis e sem face de que tem sido alvo Paulo Pedroso, a resposta tem de ser solidariedade e coesão. Se, pelo contrário, abrem brechas, os inimigos da democracia passam a saber como, explorando as dissenções internas, atacar os partidos e consequentemente minar os alicerces da vida democrática.

Mas é de futuro que os portugueses precisam. Um futuro construído sem debates fechados e encerrados antes de serem travados e um futuro em que o PS assuma a responsabilidade de não ser o partido do «sim, mas». Um partido que, obcecado com a vontade de a todos agradar, a propósito de tudo, procure dar uma no cravo e outra na ferradura. «Sim, privilegiamos o emprego e a solidariedade, mas temos de desregular e minimizar a intervenção do Estado nestes domínios. Sim, privilegiamos o crescimento económico, mas o papel das políticas públicas para este objectivo é despiciendo». A construção de uma alternativa mobilizadora não pode passar por este tipo de posicionamento.

Do mesmo modo, uma alternativa não se alimenta de debates ideológicos equívocos. A questão essencial não deve ser a de saber se o PS, para ganhar eleições, deve virar ao centro, à esquerda, para o lado, para cima ou para baixo. A responsabilidade no processo de definição de «novas fronteiras» é antes a de combinar moderação numas dimensões com propostas radicais noutras. Não apenas porque é esta a melhor forma de mobilizar o eleitorado central para vencer eleições, mas, também porque de nada serve criar divergências ideológicas artificiais, apenas para legitimar simbolicamente os novos poderes - até porque a consequência disso pode ser inesperada, nomeadamente na medida em que se dá o flanco esquerdo a outras forças partidárias.

Mas há uma dimensão fundamental por onde devem passar as fronteiras do futuro. Uma dimensão que, do ponto de vista eleitoral, pode não ser nem mobilizadora, nem compensadora. Ainda assim, uma dimensão que por imperativo ético deve ser a base em que assenta qualquer alternativa verdadeiramente transformadora da sociedade portuguesa. O combate ao populismo nas suas diversas formas. Não ceder um milímetro na defesa das instituições da democracia e dar luta sem tréguas a quem procura acentuar o descrédito da vida político-partidária é difícil e implicará a derrota em muitas batalhas. Mas, quem não estiver disposto a travar de forma decidida este combate, estará a colaborar no calvário do sistema de que faz parte.

Se uma alternativa de poder não assentar no combate ao populismo, pode até, em tudo o resto, procurar transformar alguma coisa, mas não será nunca um projecto alternativo. No futuro, essa será certamente uma linha não apenas de fronteira, mas, também, de demarcação.
artigo publicado em A Capital, 6 de Outubro