Sinto-me Enganado
"Alguma vez tiveram a sensação de terem sido enganados?", perguntava Johnny Rotten no final de um concerto dos Sex Pistols, num misto de raiva e ironia, como que para desmascarar a "grande fraude" que era a atitude da sua banda. Hoje, quando escrevo, numa altura em que se desconhecem os resultados das eleições presidenciais norte-americanas e independentemente destes, é também assim que me sinto: enganado, defraudado.
Antes de mais, enganado pela fraude eleitoral em que assentou a vitória de George Bush há quatro anos. Não apenas pela fraude em si, mas pela forte discriminação dos eleitores negros em que esta assentou. Numa sociedade com um historial de segregação como a norte-americana, este facto é particularmente violento.
Mas enganado também porque, depois de uma vitória ferida de ilegitimidade, o descalabro da administração Bush não mais parou. O pós-11 de Setembro deixou claro que esta administração tinha um propósito forte: colocar em causa a tradição norte-americana de respeito pelas liberdades individuais e predomínio da lei. Foi o que aconteceu, por exemplo, com o Patriot Act e com a guerra do Iraque, levada a cabo à margem do direito internacional, e que, pelas mentiras em que assentou, colocou também em causa o princípio da "confiança", em que se devem basear as sociedades decentes.
No entanto, o que se tem passado em Guantánamo e o que se passou em Abu Ghraib são, provavelmente, as nódoas mais brutais que a administração Bush carrega. A superioridade moral da democracia baseia-se, em larga medida, na garantia inabalável dos direitos de todos, especialmente dos que a atacam. O facto de haver um número indeterminado de indivíduos detidos em Guantánamo, violando a Convenção de Genebra e sem qualquer direito nem garantia, envergonha qualquer democrata e não é digno dos princípios em que assenta o sistema político norte-americano. Já as imagens da prisão de Abu Ghraib falam por si. É que as expectativas face ao comportamento de um país democrático devem ser incomensuravelmente mais elevadas do que as que aplicamos a uma qualquer ditadura (seja a Cuba de Fidel ou o Iraque de Saddam), pelo que a forma como a administração Bush tem lidado com os que, de uma forma ou outra, terão atacado os EUA, não só é especialmente grave, como compromete a sua própria legitimidade democrática. Se a isto somarmos o tom messiânico que Bush sistematicamente escolhe e a permanente confusão entre convicções religiosas dos membros da administração e a sua prática política, temos um contexto em que alguns dos alicerces de uma sociedade liberal são postos em causa.
Ainda assim, a consequência mais dramática de quatro anos do Governo Bush terá sido a forte polarização e radicalização da agenda política, tendência que contagiou todo o mundo ocidental. Muito por força do papel dos neo-conservadores e de modo particularmente intenso desde a guerra no Iraque, foi estabelecida uma agenda política radical e afastada do chão-comum que caracteriza a política do mundo anglo-saxónico. Estes efeitos fizeram-se sentir um pouco por toda a Europa, e naturalmente também em Portugal. A guerra no Iraque é, na política internacional, o facto mais relevante desde a queda do Muro de Berlim e, como aquando do fim dos regimes de Leste, acarretará importantes transformações nas clivagens ao nível da política doméstica dos Estados europeus. Portugal não fugirá à regra.
Mas o que estes quatro anos deixaram absolutamente claro é que a política norte-americana não é, de modo algum, um assunto dos norte-americanos. A sua influência, bem como as consequências das opções tomadas nos EUA, fazem sentir-se de forma clara em todo o mundo. Ainda assim, são apenas os americanos que escolhem quem os deve governar, colocando a nu que há, hoje, uma clara distância entre o exercício do poder e a sua legitimidade democrática. O facto de o direito ao voto se cingir apenas ao país onde vivemos, numa altura em que o essencial das decisões políticas ultrapassa a esfera do Estado-nação, é bem reveladora da debilidade do exercício democrático de escolha nos nossos dias. É por isso que, pese embora a política norte-americana seja, em diversas dimensões, uma coisa que a nós europeus é estranha – como revelaram os debates presidenciais, assentes em regras patéticas, ou o tipo de ataques pessoais, impensáveis numa sociedade decente – eu sinto-me enganado por não ter podido votar. Se o pudesse ter feito, votaria contra Bush, em John Kerry. A favor gostava mesmo era de poder votar em Bill Clinton. Mas, o voto é, quase sempre, a escolha de um mal menor. O que, aliás, não é pouco.
publicado em A Capital, 3 de Novembro
Antes de mais, enganado pela fraude eleitoral em que assentou a vitória de George Bush há quatro anos. Não apenas pela fraude em si, mas pela forte discriminação dos eleitores negros em que esta assentou. Numa sociedade com um historial de segregação como a norte-americana, este facto é particularmente violento.
Mas enganado também porque, depois de uma vitória ferida de ilegitimidade, o descalabro da administração Bush não mais parou. O pós-11 de Setembro deixou claro que esta administração tinha um propósito forte: colocar em causa a tradição norte-americana de respeito pelas liberdades individuais e predomínio da lei. Foi o que aconteceu, por exemplo, com o Patriot Act e com a guerra do Iraque, levada a cabo à margem do direito internacional, e que, pelas mentiras em que assentou, colocou também em causa o princípio da "confiança", em que se devem basear as sociedades decentes.
No entanto, o que se tem passado em Guantánamo e o que se passou em Abu Ghraib são, provavelmente, as nódoas mais brutais que a administração Bush carrega. A superioridade moral da democracia baseia-se, em larga medida, na garantia inabalável dos direitos de todos, especialmente dos que a atacam. O facto de haver um número indeterminado de indivíduos detidos em Guantánamo, violando a Convenção de Genebra e sem qualquer direito nem garantia, envergonha qualquer democrata e não é digno dos princípios em que assenta o sistema político norte-americano. Já as imagens da prisão de Abu Ghraib falam por si. É que as expectativas face ao comportamento de um país democrático devem ser incomensuravelmente mais elevadas do que as que aplicamos a uma qualquer ditadura (seja a Cuba de Fidel ou o Iraque de Saddam), pelo que a forma como a administração Bush tem lidado com os que, de uma forma ou outra, terão atacado os EUA, não só é especialmente grave, como compromete a sua própria legitimidade democrática. Se a isto somarmos o tom messiânico que Bush sistematicamente escolhe e a permanente confusão entre convicções religiosas dos membros da administração e a sua prática política, temos um contexto em que alguns dos alicerces de uma sociedade liberal são postos em causa.
Ainda assim, a consequência mais dramática de quatro anos do Governo Bush terá sido a forte polarização e radicalização da agenda política, tendência que contagiou todo o mundo ocidental. Muito por força do papel dos neo-conservadores e de modo particularmente intenso desde a guerra no Iraque, foi estabelecida uma agenda política radical e afastada do chão-comum que caracteriza a política do mundo anglo-saxónico. Estes efeitos fizeram-se sentir um pouco por toda a Europa, e naturalmente também em Portugal. A guerra no Iraque é, na política internacional, o facto mais relevante desde a queda do Muro de Berlim e, como aquando do fim dos regimes de Leste, acarretará importantes transformações nas clivagens ao nível da política doméstica dos Estados europeus. Portugal não fugirá à regra.
Mas o que estes quatro anos deixaram absolutamente claro é que a política norte-americana não é, de modo algum, um assunto dos norte-americanos. A sua influência, bem como as consequências das opções tomadas nos EUA, fazem sentir-se de forma clara em todo o mundo. Ainda assim, são apenas os americanos que escolhem quem os deve governar, colocando a nu que há, hoje, uma clara distância entre o exercício do poder e a sua legitimidade democrática. O facto de o direito ao voto se cingir apenas ao país onde vivemos, numa altura em que o essencial das decisões políticas ultrapassa a esfera do Estado-nação, é bem reveladora da debilidade do exercício democrático de escolha nos nossos dias. É por isso que, pese embora a política norte-americana seja, em diversas dimensões, uma coisa que a nós europeus é estranha – como revelaram os debates presidenciais, assentes em regras patéticas, ou o tipo de ataques pessoais, impensáveis numa sociedade decente – eu sinto-me enganado por não ter podido votar. Se o pudesse ter feito, votaria contra Bush, em John Kerry. A favor gostava mesmo era de poder votar em Bill Clinton. Mas, o voto é, quase sempre, a escolha de um mal menor. O que, aliás, não é pouco.
publicado em A Capital, 3 de Novembro
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