quarta-feira, dezembro 22, 2004

Os adesivos

A expressão “adesivismo” não é nova na história política portuguesa. Remete para o processo de rápida conversão em massa quer de políticos, quer da imprensa monárquica ao regime republicano saído da revolução de 1910. No passado, o “adesivismo” foi um fenómeno que se confundia com a desideoligização, o pragmatismo e as relações clientelares e de patrocinato que predominavam na política portuguesa do final do século XIX e início do século passado. Hoje, transvestido de formas por vezes menos explícitas, o “adesivismo” continua a ser um fenómeno muito presente na política e na sociedade portuguesas.
Com o Partido Socialista a liderar todas as sondagens e, essencialmente, com resultados esmagadores na resposta à pergunta, “quem acha que vai vencer as próximas eleições?” (que a esta distância é um indicador mais fiável do que a intenção directa de voto), assiste-se a um regresso em peso do fenómeno dos “adesivos”. É evidente que, para além do claro cheiro a vitória e a poder que se sente em torno do PS, há uma dimensão explicativa para que tal aconteça. O descalabro governativo, a falta de credibilidade e a instabilidade institucional permanente que se fizeram sentir ao longo destes tempos de governação de coligação de direita criaram, em grande parte da sociedade portuguesa, uma necessidade quase absoluta de estabilidade – o que faz com que muitos se virem para o PS, não porque estejam convictos das virtualidades desta opção, mas, sim, porque se querem ver livres de Santana Lopes e do actual governo.
Contudo, numa altura em que a estabilidade parece ser a aspiração política dominante na sociedade portuguesa, o facto de nos últimos tempos se ter assistido a um conjunto de aproximações improváveis de notáveis ao PS (ao qual há que somar um sem número de administradores de empresas públicas ou quadros dirigentes e intermédios da administração), acarreta consequências nefastas para a esfera política. Se é verdade que esta tendência é um sintoma claro da probabilidade do PS formar governo apoiado numa maioria absoluta, esconde, também, obstáculos para que, posteriormente, o exercício da governação seja consequente com o pedido que agora é feito ao eleitorado.
Antes de mais porque os “adesivos” são filhos de uma característica típica das elites portuguesas: a acumulação de estatutos contraditórios. Numa democracia consolidada, o fenómeno dos “adesivos” é menos intenso do que em Portugal porque, pura e simplesmente, não há lugar para a figura do “independente” como nós o conhecemos – universitário de manhã, comentador ao meio dia, empresário à tarde e, invariavelmente, amigo do poder de cada momento. Do mesmo modo que a separação entre elites da administração e pessoal político é mais clara. Em última análise, em Portugal, de cada vez que há uma mudança de poder, assistimos à triste e despudorada cena do “adesivismo” porque, frequentemente sob a capa de “independentes”, se esconde uma marca distintiva do País, a fraca autonomia entre os diferentes segmentos das elites e a fraquíssima cultura de pluralismo – tudo traços de uma cultura política paroquial.
O problema essencial é que agora, como no tempo da monarquia constitucional, ou da primeira república, os “adesivos” – que farejam o cheiro do poder com alguma antecipação – são um factor de bloqueio das transformações que a sociedade portuguesa precisa de levar a cabo. Acima de tudo porque, pela sua natureza, temem as mudanças e as transformações, privilegiando invariavelmente o conservadorismo, o imobilismo e a garantia dos seus lugares e posições relativas. Numa altura em que o país precisa de estabilidade institucional para que seja possível mudar alguma coisa, paradoxalmente os sintomas de que essa estabilidade institucional pode chegar em Fevereiro trazem as causas da sua própria inconsequência. É que sendo verdade que uma vez no poder quem queira reformar, tem de desagradar a muitos. Não é menos verdade que para conquistar o poder livre de amarras é preciso, nesta altura, saber recusar apoios. Apoios que aparentando trazer o cheiro sedutor da vitória, escondem as sementes de um país que continuará pouco plural e muito imobilista.
publicado em A Capital