Um mundo de aventuras
Um extraterrestre com sólida formação em ciência política e em relações internacionais que aterrasse por acidente em Portugal teria dificuldade em perceber o que por cá se tem passado. Se calhasse chegar na passada sexta-feira e ficasse até ontem, deixar-nos-ia certamente perplexo. É verdade que a nossa realidade há muito que é, de si, desafiadora da racionalidade. Desde Julho, contudo, a tendência intensificou-se. Olhar para a política portuguesa e conseguir encontrar nela uma réstia de lógica na acção passou a ser um exercício de enorme dificuldade. E o mais estranho é que, no essencial, a culpa não tem sido nem das circunstâncias, nem da estrutura. A culpa deve ser assacada, quase em exclusivo, aos agentes.
Desde que Santana Lopes se viu nas vestes de primeiro-ministro, aquilo a que se assistiu foi apenas à inconstância. Ainda assim, a cada episódio novo, quando as coisas davam sinais de que não estavam a correr nada bem, houve sempre alguém para afirmar: “ele com o tempo aprende”, ou “isto tem sido assim, mas o tipo tem uma intuição fabulosa”. Mesmo depois do descalabro, os mais benévolos continuam a insistir que “em campanha é imparável, gera uma empatia com as pessoas...”. Acontece que a realidade tem-se encarregado sempre de demonstrar que com Santana Lopes nada é como havia sido prometido – antes de mais, os mitos sobre o próprio. Com este Governo, houve, de facto, ”uns demónios que se soltaram”, acontece que quem abriu a caixa onde estavam escondidos foi o próprio primeiro-ministro. E o mais espantoso é que fê-lo quase sozinho, apenas com a ajuda de uns poucos. Tinha razão, por isso, Dias Loureiro quando confessou que sugeriu ao “Pedro” que se demitisse, sugestão que o “Pedro” primeiro aceitou, mas, depois, contrariando a sua própria intuição, rejeitou.
Neste contexto, Sampaio, por uma vez com total clareza, limitou-se a revelar o óbvio – aquilo que a larga maioria do país, a totalidade da oposição e grande parte do PSD e mesmo do governo, já sabia. E o óbvio é que Santana Lopes teve, da parte do Presidente, as condições para governar mas, pura e simplesmente, faltou-lhe a arte e o engenho para o fazer, envolvendo-se e envolvendo as instituições numa série de episódios que colocavam em causa a credibilidade do Governo e a sua capacidade para enfrentar a crise que o País vive.
Mas, os espíritos mais generosos pensaram que uma vez dissolvida a Assembleia, a música mudaria e teríamos o verdadeiro Santana Lopes. Mas enganaram-se novamente, é que a confusão, uma vez instalada, não mais abandonou a coligação, provando, simultaneamente, que os demónios quando se soltam tendem a não se ir embora e que, mesmo a posteriori, a coligação continuava disposta a dar ao Presidente justificações para a decisão tomada.
A novela dos últimos dias tem sido paradigmática: primeiro PSD e PP concorriam coligados, depois queriam dar um tempo para pensarem, para logo depois concorrerem separados, ainda por mais uma vez coligados, para finalmente, até informação em contrário, concorrerem separados, com a promessa de se coligarem depois. No meio disto, afirmações sistemáticas de que o adversário do PSD não era o Presidente, logo acompanhadas por críticas a Jorge Sampaio. Num dia, discordavam, mas respeitavam a decisão do Presidente. No dia seguinte, o Governo demitia-se porque o Presidente havia acusado o primeiro-ministro de instabilidade e incompetência. Confuso, não é?
A tentativa de encontrar um racional por detrás deste comportamento desafia os espíritos mais lúcidos. Por exemplo, no processo de decisão que há duas semanas está em curso é difícil encontrar uma táctica, ou uma estratégia, o que se vislumbra é apenas um conduta errática – que é, afinal, a imagem de marca de Santana Lopes. Com agentes políticos destes, é complicado tornar a realidade perceptível ou arriscar construir cenários sobre o que irá acontecer na política portuguesa. Recorra-se a manuais de ciência política, ao método comparativo e a experiências estrangeiras e não se encontrará grandes pistas para perceber o que por cá se passa.
Há quatro meses que o país vive como num mundo de aventuras, em que a realidade é dos vários factores em jogo, aquele que tem sido mais maltratado. Com Santana Lopes ao leme, aquela é sempre mutável, inconstante e maleável. Mas a uma relação muito particular com o real, há ainda que juntar a imprevisibilidade como motor da acção política. Enquanto isto acontece, a imagem da política e dos seus agentes vai-se degradando aos olhos dos cidadãos, quem sabe se de modo irreversível. E, acima de tudo, vai ficando esquecido que a gestão da coisa pública não é uma aventura errante. Regressar à normalidade, dignificar as instituições e introduzir racionalidade na acção política passou, nos últimos tempos, a ser a ambição primeira para o sistema político português. O que parecendo evidente, ameaça ser muito exigente.
publicado em A Capital
Desde que Santana Lopes se viu nas vestes de primeiro-ministro, aquilo a que se assistiu foi apenas à inconstância. Ainda assim, a cada episódio novo, quando as coisas davam sinais de que não estavam a correr nada bem, houve sempre alguém para afirmar: “ele com o tempo aprende”, ou “isto tem sido assim, mas o tipo tem uma intuição fabulosa”. Mesmo depois do descalabro, os mais benévolos continuam a insistir que “em campanha é imparável, gera uma empatia com as pessoas...”. Acontece que a realidade tem-se encarregado sempre de demonstrar que com Santana Lopes nada é como havia sido prometido – antes de mais, os mitos sobre o próprio. Com este Governo, houve, de facto, ”uns demónios que se soltaram”, acontece que quem abriu a caixa onde estavam escondidos foi o próprio primeiro-ministro. E o mais espantoso é que fê-lo quase sozinho, apenas com a ajuda de uns poucos. Tinha razão, por isso, Dias Loureiro quando confessou que sugeriu ao “Pedro” que se demitisse, sugestão que o “Pedro” primeiro aceitou, mas, depois, contrariando a sua própria intuição, rejeitou.
Neste contexto, Sampaio, por uma vez com total clareza, limitou-se a revelar o óbvio – aquilo que a larga maioria do país, a totalidade da oposição e grande parte do PSD e mesmo do governo, já sabia. E o óbvio é que Santana Lopes teve, da parte do Presidente, as condições para governar mas, pura e simplesmente, faltou-lhe a arte e o engenho para o fazer, envolvendo-se e envolvendo as instituições numa série de episódios que colocavam em causa a credibilidade do Governo e a sua capacidade para enfrentar a crise que o País vive.
Mas, os espíritos mais generosos pensaram que uma vez dissolvida a Assembleia, a música mudaria e teríamos o verdadeiro Santana Lopes. Mas enganaram-se novamente, é que a confusão, uma vez instalada, não mais abandonou a coligação, provando, simultaneamente, que os demónios quando se soltam tendem a não se ir embora e que, mesmo a posteriori, a coligação continuava disposta a dar ao Presidente justificações para a decisão tomada.
A novela dos últimos dias tem sido paradigmática: primeiro PSD e PP concorriam coligados, depois queriam dar um tempo para pensarem, para logo depois concorrerem separados, ainda por mais uma vez coligados, para finalmente, até informação em contrário, concorrerem separados, com a promessa de se coligarem depois. No meio disto, afirmações sistemáticas de que o adversário do PSD não era o Presidente, logo acompanhadas por críticas a Jorge Sampaio. Num dia, discordavam, mas respeitavam a decisão do Presidente. No dia seguinte, o Governo demitia-se porque o Presidente havia acusado o primeiro-ministro de instabilidade e incompetência. Confuso, não é?
A tentativa de encontrar um racional por detrás deste comportamento desafia os espíritos mais lúcidos. Por exemplo, no processo de decisão que há duas semanas está em curso é difícil encontrar uma táctica, ou uma estratégia, o que se vislumbra é apenas um conduta errática – que é, afinal, a imagem de marca de Santana Lopes. Com agentes políticos destes, é complicado tornar a realidade perceptível ou arriscar construir cenários sobre o que irá acontecer na política portuguesa. Recorra-se a manuais de ciência política, ao método comparativo e a experiências estrangeiras e não se encontrará grandes pistas para perceber o que por cá se passa.
Há quatro meses que o país vive como num mundo de aventuras, em que a realidade é dos vários factores em jogo, aquele que tem sido mais maltratado. Com Santana Lopes ao leme, aquela é sempre mutável, inconstante e maleável. Mas a uma relação muito particular com o real, há ainda que juntar a imprevisibilidade como motor da acção política. Enquanto isto acontece, a imagem da política e dos seus agentes vai-se degradando aos olhos dos cidadãos, quem sabe se de modo irreversível. E, acima de tudo, vai ficando esquecido que a gestão da coisa pública não é uma aventura errante. Regressar à normalidade, dignificar as instituições e introduzir racionalidade na acção política passou, nos últimos tempos, a ser a ambição primeira para o sistema político português. O que parecendo evidente, ameaça ser muito exigente.
publicado em A Capital
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