Ir para além da Merkel
Movido por voluntarismo ideológico, o Governo anunciou que iria além da troika. Nos próximos anos, o aprofundar da recessão encarregar-se-á de demonstrar a dimensão do erro. Entretanto, como se não bastasse, o primeiro-ministro resolveu expor a sua doutrina sobre o papel que o BCE deveria desempenhar na resolução da crise. Para Passos Coelho, o BCE deve limitar-se a fazer o que tem feito, ou seja, praticamente nada, permitindo, pelo caminho, que a espiral contagiosa da crise da dívida soberana se tornasse imparável. A alternativa – transformar-se num verdadeiro banco central e funcionar como financiador de último recurso – seria, para o primeiro-ministro português, dar “um péssimo sinal aos países indisciplinados”. Fica claro: depois de ir para além da troika, Passos Coelho optou por ir para além da Senhora Merkel e da visão alemã sobre a natureza moral da crise.
A posição do primeiro-ministro representa uma divergência estratégica com o Presidente da República, que tem insistido na posição contrária. Mas, convenhamos, a discordância entre as duas principais figuras do Estado está longe de ser o aspecto mais inquietante. O que é preocupante é termos um primeiro-ministro com uma posição que não defende o interesse nacional, nega o carácter sistémico da crise da zona euro e insiste na sua natureza moral (“uns indisciplinados estes povos do sul”), enquanto considera perversas as alterações necessárias na arquitectura do euro.
É assustador descobrir que Passos Coelho está convencido de que é possível solucionar o problema português com ajustamentos austeros não acompanhados por uma intervenção radicalmente diferente do BCE e uma política orçamental expansionista nos países com excedentes na balança de transacções correntes. Prosseguir neste caminho é insistir no pré-anúncio do fim do euro.
Este padrão, aliás, é apenas uma versão extrema do que tem sido a opção política de todas as economias intervencionadas. Primeiro, procura-se a diferenciação face ao vizinho do lado – que, é-nos dito, está numa posição mais complexa (o “nós não somos a Grécia”) –, para, depois, se afirmar que sozinhos somos capazes de enfrentar os problemas. Na verdade, esta estratégia tem sido seguida em toda a periferia, levando ao isolamento dos casos, secundarizando a dimensão partilhada dos problemas e promovendo uma neutralização da posição negocial dos países ‘fracos’. O que sugere que o problema político talvez seja também de incapacidade do sul e não apenas de falta de vontade alemã.
Como propunha esta semana, num artigo no Irish Times, Daragh McDowell, em lugar de aceitarem as soluções que lhes estão a ser impostas, o que os PIIGS deveriam fazer era optar por uma posição negocial conjunta, ameaçando, em último caso, com a utilização da ‘bomba atómica’ ao seu dispor: um default coordenado de todas as economias da periferia. Talvez assim, o eixo Merkozy percebesse o risco sistémico e a impossibilidade política de impor sacrifícios até que os PIIGS passem a competir, pelos baixos salários, com a China e a Índia.
publicado no Expresso de 19 de Novembro.
A posição do primeiro-ministro representa uma divergência estratégica com o Presidente da República, que tem insistido na posição contrária. Mas, convenhamos, a discordância entre as duas principais figuras do Estado está longe de ser o aspecto mais inquietante. O que é preocupante é termos um primeiro-ministro com uma posição que não defende o interesse nacional, nega o carácter sistémico da crise da zona euro e insiste na sua natureza moral (“uns indisciplinados estes povos do sul”), enquanto considera perversas as alterações necessárias na arquitectura do euro.
É assustador descobrir que Passos Coelho está convencido de que é possível solucionar o problema português com ajustamentos austeros não acompanhados por uma intervenção radicalmente diferente do BCE e uma política orçamental expansionista nos países com excedentes na balança de transacções correntes. Prosseguir neste caminho é insistir no pré-anúncio do fim do euro.
Este padrão, aliás, é apenas uma versão extrema do que tem sido a opção política de todas as economias intervencionadas. Primeiro, procura-se a diferenciação face ao vizinho do lado – que, é-nos dito, está numa posição mais complexa (o “nós não somos a Grécia”) –, para, depois, se afirmar que sozinhos somos capazes de enfrentar os problemas. Na verdade, esta estratégia tem sido seguida em toda a periferia, levando ao isolamento dos casos, secundarizando a dimensão partilhada dos problemas e promovendo uma neutralização da posição negocial dos países ‘fracos’. O que sugere que o problema político talvez seja também de incapacidade do sul e não apenas de falta de vontade alemã.
Como propunha esta semana, num artigo no Irish Times, Daragh McDowell, em lugar de aceitarem as soluções que lhes estão a ser impostas, o que os PIIGS deveriam fazer era optar por uma posição negocial conjunta, ameaçando, em último caso, com a utilização da ‘bomba atómica’ ao seu dispor: um default coordenado de todas as economias da periferia. Talvez assim, o eixo Merkozy percebesse o risco sistémico e a impossibilidade política de impor sacrifícios até que os PIIGS passem a competir, pelos baixos salários, com a China e a Índia.
publicado no Expresso de 19 de Novembro.