Um futuro incerto.
A crise internacional chegou sem que fosse prevista; nas últimas semanas, regimes desmoronaram-se inesperadamente; há uns dias, ficámos a saber que o PIB português cresceu, em 2010, o dobro do anunciado pelo Governo e acima das expectativas das organizações internacionais. Não é preciso estar muito atento para encontrar outros exemplos da incapacidade de antecipar acontecimentos cruciais ou de previsões que falharam.
Há explicações. De acordo com uma auditoria interna, o FMI revelou-se incapaz de antecipar a crise por ter sido alvo de "uma captura intelectual" que gerava simpatia face aos escassos mecanismos de regulação existentes, ao mesmo tempo que se deixava influenciar pela autoavaliação que era feita pelos bancos centrais. No "Washington Post", David Ignatius sugeria que, por recorrer cada vez mais a contactos nos serviços secretos de regimes amigos, a CIA perdeu margem de manobra para desenvolver ações unilaterais em alguns países, tornando-se dependente de informação enviesada a favor do statu quo. Ou seja, a CIA ficou presa numa armadilha em que dependia da colaboração dos serviços secretos locais, enquanto precisava de os espiar. Se a isso somarmos que, como escreveu na "Newsweek" Niall Ferguson, a política externa norte-americana para o Médio Oriente tem trabalhado exclusivamente com um objetivo estratégico - conter o Irão -, secundarizando outras dimensões, fica, de algum modo, explicada a surpresa do Egito. Quanto à falha das previsões do PIB português, a narrativa está feita: as instituições internacionais são credíveis e o Governo português não. Mesmo quando as primeiras, em lugar de previsões, produzem notícias.
Numa oportuna discussão no seu blogue, o especialista em relações internacionais Daniel W. Drezner sustenta que, apesar de tudo, muitos analistas anteciparam alguns dos eventos que viriam a ocorrer no Egito, tendo ao longo do tempo dito que os focos de descontentamento eram crescentes, expressando frustração com a incapacidade dos governos em fazerem reformas. Ainda assim, Drezner reconhecia que a ciência política assenta num conjunto de teorias sistémicas e espera frequentemente que os factos se conformem com os modelos. O problema é que a realidade é mais complexa, com muitas variáveis e idiossincrasias. Drezner conclui: é para lidar com a complexidade que precisamos de teorias e, mesmo que estas se revelem incapazes de antecipar, são ainda assim a menos má das opções.
Pode bem ser assim, mas o mais provável é continuarmos incapazes de compreender de modo inteligível o que nos rodeia. Como recordava há semanas António Costa Silva, parecemo-nos com Fabrizio del Dongo (personagem da "Cartuxa de Parma", de Stendhal), quando, nas arrebatadoras cem primeiras páginas do romance, num único dia, atravessa a batalha de Waterloo, é ferido, cruza-se sem saber com o próprio pai, sempre com perceção escassa do contexto que o envolve. Como ele, navegamos movidos por um conjunto de ambições românticas e, em lugar de proclamações definitivas sobre o futuro, assentes em modelos fechados, precisamos de mais factos e menos asserções teóricas. É a única forma de lidarmos com a contingência que nos rodeia e contrariarmos o del Dongo que tem estado demasiadamente presente nos olhos com que olhamos para o mundo. Seja em relação à crise, ao Médio Oriente ou ao PIB português.
Texto publicado na edição do Expresso de 19 de fevereiro de 2011
Há explicações. De acordo com uma auditoria interna, o FMI revelou-se incapaz de antecipar a crise por ter sido alvo de "uma captura intelectual" que gerava simpatia face aos escassos mecanismos de regulação existentes, ao mesmo tempo que se deixava influenciar pela autoavaliação que era feita pelos bancos centrais. No "Washington Post", David Ignatius sugeria que, por recorrer cada vez mais a contactos nos serviços secretos de regimes amigos, a CIA perdeu margem de manobra para desenvolver ações unilaterais em alguns países, tornando-se dependente de informação enviesada a favor do statu quo. Ou seja, a CIA ficou presa numa armadilha em que dependia da colaboração dos serviços secretos locais, enquanto precisava de os espiar. Se a isso somarmos que, como escreveu na "Newsweek" Niall Ferguson, a política externa norte-americana para o Médio Oriente tem trabalhado exclusivamente com um objetivo estratégico - conter o Irão -, secundarizando outras dimensões, fica, de algum modo, explicada a surpresa do Egito. Quanto à falha das previsões do PIB português, a narrativa está feita: as instituições internacionais são credíveis e o Governo português não. Mesmo quando as primeiras, em lugar de previsões, produzem notícias.
Numa oportuna discussão no seu blogue, o especialista em relações internacionais Daniel W. Drezner sustenta que, apesar de tudo, muitos analistas anteciparam alguns dos eventos que viriam a ocorrer no Egito, tendo ao longo do tempo dito que os focos de descontentamento eram crescentes, expressando frustração com a incapacidade dos governos em fazerem reformas. Ainda assim, Drezner reconhecia que a ciência política assenta num conjunto de teorias sistémicas e espera frequentemente que os factos se conformem com os modelos. O problema é que a realidade é mais complexa, com muitas variáveis e idiossincrasias. Drezner conclui: é para lidar com a complexidade que precisamos de teorias e, mesmo que estas se revelem incapazes de antecipar, são ainda assim a menos má das opções.
Pode bem ser assim, mas o mais provável é continuarmos incapazes de compreender de modo inteligível o que nos rodeia. Como recordava há semanas António Costa Silva, parecemo-nos com Fabrizio del Dongo (personagem da "Cartuxa de Parma", de Stendhal), quando, nas arrebatadoras cem primeiras páginas do romance, num único dia, atravessa a batalha de Waterloo, é ferido, cruza-se sem saber com o próprio pai, sempre com perceção escassa do contexto que o envolve. Como ele, navegamos movidos por um conjunto de ambições românticas e, em lugar de proclamações definitivas sobre o futuro, assentes em modelos fechados, precisamos de mais factos e menos asserções teóricas. É a única forma de lidarmos com a contingência que nos rodeia e contrariarmos o del Dongo que tem estado demasiadamente presente nos olhos com que olhamos para o mundo. Seja em relação à crise, ao Médio Oriente ou ao PIB português.
Texto publicado na edição do Expresso de 19 de fevereiro de 2011