Pensem Nisto
No final de 1996, o vice primeiro-ministro belga, Elio di Rupo, foi acusado de abusar sexualmente de menores. A crer na imprensa da altura, Olivier Trusgnach, um jovem prostituto, teria sido molestado pelo político socialista. Di Rupo foi acusado e, perante o que considerava ser a aberração da acusação do Ministério Público, recusou-se a levantar a imunidade parlamentar. Tudo isto ocorreu numa altura em que a Bélgica vivia ainda a ressaca do brutal 'caso Marc Dutroux', responsável pela morte de quatro crianças. Na mesma altura, foi ordenado um contra-inquérito pelo procurador-geral da República que apurou que as acusações eram falsas e tinham sido orquestradas por agentes da polícia, em conluio com jornalistas e políticos de extrema-direita flamengos. Mesmo num contexto de comoção coletiva perante abusos sexuais de menores, a maquinação foi desmontada. Hoje, di Rupo é líder do Partido Socialista valão, o mais votado nas últimas eleições legislativas.
Em finais de 2000, a França foi assolada pelo 'escândalo d'Outreau'. Numa pequena localidade no norte de França, estaria em funcionamento uma rede de prostituição masculina de menores. Numa fase inicial, foram envolvidas dezoito pessoas, essencialmente pais de menores, acusados de pedofilia e de incesto, tendo sido presos e mantidos afastados dos seus filhos por um período que chegou a três anos. Perante a histeria mediática, num primeiro julgamento, em 2004, o juiz Fabrice Burgaud condenou vários dos acusados a penas de prisão. A prova baseou-se em testemunhos de menores e no de alguns dos acusados, principalmente Myriam Badaoui, que colaborou com a acusação. Já em 2005, um tribunal superior, em Paris, considerou todos os implicados inocentes, com exceção de Myriam Badoui, o marido e outro casal. Entretanto, um dos inocentes, François Mourmand, havia-se suicidado na prisão. Nessa altura, Badoui confessou que havia mentido e que os acusados "não tinham feito nada". Hoje, o 'caso d'Outreau' é visto em França como um 'Tchernobyl judicial' - um exemplo assustador de como os juízes podem não resistir à pressão mediática e social, designadamente quando se trata de abusos sexuais de menores. O Estado francês, entretanto, indemnizou as vítimas por erro grosseiro. Os juízes do Tribunal Superior pediram, em nome do sistema judicial francês, desculpas públicas às vítimas.
Esta semana, Carlos Silvino, uma das testemunhas centrais do 'caso Casa Pia' e a quem no passado foi atribuída uma inusitada credibilidade, deu uma entrevista, após ter deixado de ter como advogado um ex-inspetor da Judiciária, em que, no essencial, afirma que a prova foi fabricada e que não só não conhecia os locais onde teriam sido praticados os crimes, como o reconhecimento que fez foi todo realizado previamente com inspetores da Judiciária. Independentemente das nossas convicções subjetivas sobre os vários protagonistas, o mínimo que podemos exigir é que seja, finalmente, feita uma investigação à investigação. Desde o seu início, o 'caso Casa Pia' tem demasiadas semelhanças com o que envolveu Elio di Rupo e com o 'affaire d'Outreau'. Com uma diferença assinalável: na Bélgica e em França, o sistema foi capaz de se questionar a si próprio, procurando a verdade, mesmo que isso implicasse perder a face. Pensem nisto.
Texto publicado na edição do Expresso de 29 de janeiro de 2011
Em finais de 2000, a França foi assolada pelo 'escândalo d'Outreau'. Numa pequena localidade no norte de França, estaria em funcionamento uma rede de prostituição masculina de menores. Numa fase inicial, foram envolvidas dezoito pessoas, essencialmente pais de menores, acusados de pedofilia e de incesto, tendo sido presos e mantidos afastados dos seus filhos por um período que chegou a três anos. Perante a histeria mediática, num primeiro julgamento, em 2004, o juiz Fabrice Burgaud condenou vários dos acusados a penas de prisão. A prova baseou-se em testemunhos de menores e no de alguns dos acusados, principalmente Myriam Badaoui, que colaborou com a acusação. Já em 2005, um tribunal superior, em Paris, considerou todos os implicados inocentes, com exceção de Myriam Badoui, o marido e outro casal. Entretanto, um dos inocentes, François Mourmand, havia-se suicidado na prisão. Nessa altura, Badoui confessou que havia mentido e que os acusados "não tinham feito nada". Hoje, o 'caso d'Outreau' é visto em França como um 'Tchernobyl judicial' - um exemplo assustador de como os juízes podem não resistir à pressão mediática e social, designadamente quando se trata de abusos sexuais de menores. O Estado francês, entretanto, indemnizou as vítimas por erro grosseiro. Os juízes do Tribunal Superior pediram, em nome do sistema judicial francês, desculpas públicas às vítimas.
Esta semana, Carlos Silvino, uma das testemunhas centrais do 'caso Casa Pia' e a quem no passado foi atribuída uma inusitada credibilidade, deu uma entrevista, após ter deixado de ter como advogado um ex-inspetor da Judiciária, em que, no essencial, afirma que a prova foi fabricada e que não só não conhecia os locais onde teriam sido praticados os crimes, como o reconhecimento que fez foi todo realizado previamente com inspetores da Judiciária. Independentemente das nossas convicções subjetivas sobre os vários protagonistas, o mínimo que podemos exigir é que seja, finalmente, feita uma investigação à investigação. Desde o seu início, o 'caso Casa Pia' tem demasiadas semelhanças com o que envolveu Elio di Rupo e com o 'affaire d'Outreau'. Com uma diferença assinalável: na Bélgica e em França, o sistema foi capaz de se questionar a si próprio, procurando a verdade, mesmo que isso implicasse perder a face. Pensem nisto.
Texto publicado na edição do Expresso de 29 de janeiro de 2011
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