Juízes em causa própria
Faz já algum tempo que o cinismo se generalizou. De tal modo que, hoje, não resta quase ninguém que não defenda a austeridade, desde que a austeridade não chegue à sua carteira. Depois de meses de clamor público por mais cortes, chegámos ao momento em que se começa a assistir à mobilização contra os cortes salariais. Esta semana, essa espantosa agremiação que dá pelo nome de Sindicato dos Magistrados do Ministério Público anunciou que vai avançar para os tribunais para impedir as reduções de salários na administração pública.
Não se pense, contudo, que o que move o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público é uma discordância com raiz numa visão diferente do que deveria ser a política macroeconómica, ou mesmo uma perspetiva distinta sobre o ritmo adequado para a consolidação orçamental. O problema dos magistrados é que os "cortes são desproporcionados, desiguais, atingem apenas uma parte dos portugueses". Não há dúvidas quanto à natureza desigual dos cortes, desde logo porque só começam nos salários acima dos 1500 euros e a percentagem é progressiva, de tal forma que o mais provável é que os magistrados sejam alvo de um corte de 10% - afinal encontram-se no topo da pirâmide salarial. Não restam também dúvidas de que atingem apenas uma parte dos portugueses, até porque não se sabe qual seria o instrumento legal que, numa economia de mercado, está ao alcance de um Governo para determinar salários no sector privado. No fundo, neste caso, como em muitos outros recentes, o que assistimos é a mais uma das birras corporativas em que se especializaram os senhores magistrados.
Nada disto deve, no entanto, ser tomado apenas como um episódio sem relevância - a somar a muitos outros. Bem pelo contrário, estamos a assistir a sucessivas e paulatinas tentativas de usurpação das funções executivas e legislativas por parte do poder judicial. O mecanismo deste feita é claro: o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público apresenta uma queixa e quem vai julgar é, naturalmente, um juiz. Há bons motivos para estarmos preocupados, até porque o que move os juízes não é segredo.
No texto de apresentação do último congresso da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, a ambição não era escondida. Começando por constatar que "o poder judicial (...) corre o risco de se vir a assumir-se como verdadeiro poder", depois do "século XIX (ter sido) do poder legislativo e o século XX o do poder executivo", o sindicato dos juízes não hesita em assumir "anular medidas do poder executivo (...) como exemplo claro de um novo modo de exercício do judiciário". Tudo para culminar no que qualificam como "uma transferência de legitimidade dos poderes legislativo e executivo para o judicial", um processo cuja "visibilidade densifica a sua dimensão política".
Pode bem dar-se o caso da maioria dos magistrados não se rever nem nas atitudes, nem no pensamento estratégico das associações que os representam. Mas enquanto os tolerarem passivamente, temo bem dizê-lo, são coniventes com a pulsão hegemónica do poder judiciário. Podemos concordar ou discordar do PEC, da austeridade e do OE-2011, mas não é isso que está em causa. É, sim, saber se a função dos magistrados é substituírem-se a políticos eleitos. Uma ambição que os sindicatos dos magistrados não escondem.
Texto publicado na edição do Expresso de 30 de dezembro de 2010
Não se pense, contudo, que o que move o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público é uma discordância com raiz numa visão diferente do que deveria ser a política macroeconómica, ou mesmo uma perspetiva distinta sobre o ritmo adequado para a consolidação orçamental. O problema dos magistrados é que os "cortes são desproporcionados, desiguais, atingem apenas uma parte dos portugueses". Não há dúvidas quanto à natureza desigual dos cortes, desde logo porque só começam nos salários acima dos 1500 euros e a percentagem é progressiva, de tal forma que o mais provável é que os magistrados sejam alvo de um corte de 10% - afinal encontram-se no topo da pirâmide salarial. Não restam também dúvidas de que atingem apenas uma parte dos portugueses, até porque não se sabe qual seria o instrumento legal que, numa economia de mercado, está ao alcance de um Governo para determinar salários no sector privado. No fundo, neste caso, como em muitos outros recentes, o que assistimos é a mais uma das birras corporativas em que se especializaram os senhores magistrados.
Nada disto deve, no entanto, ser tomado apenas como um episódio sem relevância - a somar a muitos outros. Bem pelo contrário, estamos a assistir a sucessivas e paulatinas tentativas de usurpação das funções executivas e legislativas por parte do poder judicial. O mecanismo deste feita é claro: o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público apresenta uma queixa e quem vai julgar é, naturalmente, um juiz. Há bons motivos para estarmos preocupados, até porque o que move os juízes não é segredo.
No texto de apresentação do último congresso da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, a ambição não era escondida. Começando por constatar que "o poder judicial (...) corre o risco de se vir a assumir-se como verdadeiro poder", depois do "século XIX (ter sido) do poder legislativo e o século XX o do poder executivo", o sindicato dos juízes não hesita em assumir "anular medidas do poder executivo (...) como exemplo claro de um novo modo de exercício do judiciário". Tudo para culminar no que qualificam como "uma transferência de legitimidade dos poderes legislativo e executivo para o judicial", um processo cuja "visibilidade densifica a sua dimensão política".
Pode bem dar-se o caso da maioria dos magistrados não se rever nem nas atitudes, nem no pensamento estratégico das associações que os representam. Mas enquanto os tolerarem passivamente, temo bem dizê-lo, são coniventes com a pulsão hegemónica do poder judiciário. Podemos concordar ou discordar do PEC, da austeridade e do OE-2011, mas não é isso que está em causa. É, sim, saber se a função dos magistrados é substituírem-se a políticos eleitos. Uma ambição que os sindicatos dos magistrados não escondem.
Texto publicado na edição do Expresso de 30 de dezembro de 2010
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