A democracia capturada
A revista "Sábado" publicou esta semana a enésima reportagem sobre eleições internas num partido. Depois do "gang do multibanco" no PSD, agora o tema foi as federações do PS. Se escrevo enésima é porque é um daqueles assuntos que antes de ser publicado já o era. Podemos antecipar com segurança o que vamos ler: uma mesma história, repleta de episódios de arrebanhamento de votos, de quotas pagas a granel, cadernos eleitorais martelados, tudo culminando em processos de formação de poder que de democrático têm cada vez menos. Não sendo inovadora, a reportagem da "Sábado" é reveladora e talvez a mudança nos partidos dependa da revelação.
As eleições internas dos partidos são um assunto demasiadamente sério para ser deixado apenas aos militantes partidários. Para um estranho à vida partidária, estamos perante temas irrelevantes. Mas não é assim. Uma parte muito significativa dos mecanismos de poder interno assenta nas escolhas que são feitas nas estruturas locais. Ora, como os partidos são uma condição necessária à democracia, em última análise, o poder de quem nos governa está alicerçado nestes atos eleitorais. E o que deles se sabe é pouco edificante.
O tema das quotas é, a este propósito, um excelente observatório: saber como são pagas as quotas diz-nos muito sobre as lógicas de funcionamento das estruturas partidárias. Persiste naturalmente muita militância convicta, desinteressada e que se mobiliza autonomamente; mas, hoje, a militância genuína é facilmente desmobilizada por eleições manipuladas por quem pode pagar quotas a terceiros. Mesmo numa altura em que os estatutos partidários apertaram o cerco a estas formas de caciquismo, no mínimo, elas persistem.
Não há nada de particularmente novo nestes mecanismos de generosidade interessada. Nisso os partidos continuam a funcionar à imagem do liberalismo do final do século XIX e da República do início do século XX. O problema é que, enquanto a democracia portuguesa, no seu conjunto, se afastou significativamente do padrão de "eleições feitas", os partidos continuam a operar num quadro de "apoio comprado" e de "apoio por compensação concreta".
A generosidade dos caciques que pagam quotas produz vários efeitos. Enquanto fecha os partidos à entrada de novos militantes, reproduz lógicas perversas de poder interno. Por um lado, a perpetuação de uma determinada estrutura de poder é mais fácil de sustentar se não existirem novos militantes; por outro, quem paga quotas vence eleições e quem vence eleições passa a ter mais recursos para, depois, pagar mais quotas.
Perante isto, as direções partidárias tendem a defender que o problema existe a um nível local, mas depois as estruturas nacionais vão encontrando formas de compensar estas disfuncionalidades. É isso que explica que as lideranças, quando confrontadas com a questão, reajam com condescendência - ao ponto do líder da federação do Porto afirmar à "Sábado" que "as quotas são um problema individual de cada militante". Infelizmente, não é assim, são um problema coletivo, que mina a democracia na base e que não deve ser tolerado. Se nada mais, porque o sinal dado é claro: se os partidos não são capazes nem de basear os seus mecanismos de poder interno no cumprimento da lei, nem de torná-los verdadeiramente pluralistas, não há razão para acreditarmos que, uma vez no governo, serão capazes de o fazer no Estado.
Texto publicado na edição do Expresso de 11 de dezembro de 2010
As eleições internas dos partidos são um assunto demasiadamente sério para ser deixado apenas aos militantes partidários. Para um estranho à vida partidária, estamos perante temas irrelevantes. Mas não é assim. Uma parte muito significativa dos mecanismos de poder interno assenta nas escolhas que são feitas nas estruturas locais. Ora, como os partidos são uma condição necessária à democracia, em última análise, o poder de quem nos governa está alicerçado nestes atos eleitorais. E o que deles se sabe é pouco edificante.
O tema das quotas é, a este propósito, um excelente observatório: saber como são pagas as quotas diz-nos muito sobre as lógicas de funcionamento das estruturas partidárias. Persiste naturalmente muita militância convicta, desinteressada e que se mobiliza autonomamente; mas, hoje, a militância genuína é facilmente desmobilizada por eleições manipuladas por quem pode pagar quotas a terceiros. Mesmo numa altura em que os estatutos partidários apertaram o cerco a estas formas de caciquismo, no mínimo, elas persistem.
Não há nada de particularmente novo nestes mecanismos de generosidade interessada. Nisso os partidos continuam a funcionar à imagem do liberalismo do final do século XIX e da República do início do século XX. O problema é que, enquanto a democracia portuguesa, no seu conjunto, se afastou significativamente do padrão de "eleições feitas", os partidos continuam a operar num quadro de "apoio comprado" e de "apoio por compensação concreta".
A generosidade dos caciques que pagam quotas produz vários efeitos. Enquanto fecha os partidos à entrada de novos militantes, reproduz lógicas perversas de poder interno. Por um lado, a perpetuação de uma determinada estrutura de poder é mais fácil de sustentar se não existirem novos militantes; por outro, quem paga quotas vence eleições e quem vence eleições passa a ter mais recursos para, depois, pagar mais quotas.
Perante isto, as direções partidárias tendem a defender que o problema existe a um nível local, mas depois as estruturas nacionais vão encontrando formas de compensar estas disfuncionalidades. É isso que explica que as lideranças, quando confrontadas com a questão, reajam com condescendência - ao ponto do líder da federação do Porto afirmar à "Sábado" que "as quotas são um problema individual de cada militante". Infelizmente, não é assim, são um problema coletivo, que mina a democracia na base e que não deve ser tolerado. Se nada mais, porque o sinal dado é claro: se os partidos não são capazes nem de basear os seus mecanismos de poder interno no cumprimento da lei, nem de torná-los verdadeiramente pluralistas, não há razão para acreditarmos que, uma vez no governo, serão capazes de o fazer no Estado.
Texto publicado na edição do Expresso de 11 de dezembro de 2010
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