A Europa precisa de maus alunos
Europeístas e bons alunos. Foram estes os alicerces da nossa participação no processo de integração europeia. Mas o que era uma linguagem com sentido e benefícios, transformou-se num exercício retórico que nos é prejudicial.
Desde logo porque o contexto mudou radicalmente. A Europa deixou de ser um mecanismo de reforço do Estado-nação, com a transferência de competências a ser acompanhada por maior capacitação dos Estados-membros. Hoje, vivemos um quadro artificial: o essencial das decisões políticas é tomado ao nível europeu, enquanto se vive uma encenação permanente, na qual os políticos nacionais se julgam relevantes, quando são impotentes.
Esta tendência acentuou-se. Perante o primeiro choque sério, o euro revelou-se institucionalmente frágil. Há muitos erros que devem ser assacados aos países do Sul, mas, além disso, resta uma união monetária que não previa mecanismos para lidar com os efeitos assimétricos da crise. A verdadeira clivagem económica é entre países que têm excedentes nas trocas comerciais (a Alemanha, a China e o Japão) e aqueles que apresentam balanças deficitárias (os EUA, o Reino Unido e os países da Europa do Sul) e tomar o conjunto da zona euro como a dimensão de análise relevante é, a este propósito, uma ficção. O problema não são as relações comerciais da zona euro com o resto do mundo (que são equilibradas), são os desequilíbrios internos ao euro. Ora se a saída para a crise assentar no crescimento das exportações de todos, não se percebe quem vai importar. A menos que as economias excedentárias estimulem também a procura interna, a procura global não pode crescer. Esperar que os custos do ajustamento sejam todos feitos pelas economias deficitárias do sul é um erro para o euro e assenta numa ilusão. É para essa ilusão que nos empurra a visão paroquial da senhora Merkel.
A última semana, em que assistimos impotentes ao cavalgar das taxas de juro da dívida soberana dos países da periferia, serviu para acentuar a irrelevância do debate político doméstico. Infelizmente, a ultrapassagem da barreira dos 7% não se deve nem à previsão de execução orçamental de 2010, nem à instabilidade política que se anuncia. As causas devem ser procuradas em mais uma opção politicamente errada tomada no Conselho Europeu: a renegociação da dívida, com custos repartidos para os credores, deu sinais errados aos mercados e aumentou o risco.
Este cenário deixa em aberto dois caminhos: continuar a fazer de bom aluno lá fora, executando acriticamente as soluções políticas gizadas pelo renascido eixo franco-alemão ou, pelo contrário, fazermos de bom aluno cá dentro e de mau aluno na Europa. O primeiro caminho implica uma interiorização da culpa moral sobre a situação em que nos encontramos; o segundo depende, em primeiro lugar, da aceleração da consolidação das contas públicas, mas requer que este exercício seja combinado com uma democratização das opções europeias, insistindo para que se encontre uma solução sistémica para o euro. A salvação do projeto europeu depende, hoje, da multiplicação de maus alunos em toda a Europa. Maus alunos que, por exemplo, comecem a recusar-se a comprar produtos alemães. Talvez, assim, se perceba que a questão é política e não moral e que a periferia ter vivido acima das suas possibilidades foi também uma necessidade sistémica.
Texto publicado na edição do Expresso de 13 de novembro de 2010
Desde logo porque o contexto mudou radicalmente. A Europa deixou de ser um mecanismo de reforço do Estado-nação, com a transferência de competências a ser acompanhada por maior capacitação dos Estados-membros. Hoje, vivemos um quadro artificial: o essencial das decisões políticas é tomado ao nível europeu, enquanto se vive uma encenação permanente, na qual os políticos nacionais se julgam relevantes, quando são impotentes.
Esta tendência acentuou-se. Perante o primeiro choque sério, o euro revelou-se institucionalmente frágil. Há muitos erros que devem ser assacados aos países do Sul, mas, além disso, resta uma união monetária que não previa mecanismos para lidar com os efeitos assimétricos da crise. A verdadeira clivagem económica é entre países que têm excedentes nas trocas comerciais (a Alemanha, a China e o Japão) e aqueles que apresentam balanças deficitárias (os EUA, o Reino Unido e os países da Europa do Sul) e tomar o conjunto da zona euro como a dimensão de análise relevante é, a este propósito, uma ficção. O problema não são as relações comerciais da zona euro com o resto do mundo (que são equilibradas), são os desequilíbrios internos ao euro. Ora se a saída para a crise assentar no crescimento das exportações de todos, não se percebe quem vai importar. A menos que as economias excedentárias estimulem também a procura interna, a procura global não pode crescer. Esperar que os custos do ajustamento sejam todos feitos pelas economias deficitárias do sul é um erro para o euro e assenta numa ilusão. É para essa ilusão que nos empurra a visão paroquial da senhora Merkel.
A última semana, em que assistimos impotentes ao cavalgar das taxas de juro da dívida soberana dos países da periferia, serviu para acentuar a irrelevância do debate político doméstico. Infelizmente, a ultrapassagem da barreira dos 7% não se deve nem à previsão de execução orçamental de 2010, nem à instabilidade política que se anuncia. As causas devem ser procuradas em mais uma opção politicamente errada tomada no Conselho Europeu: a renegociação da dívida, com custos repartidos para os credores, deu sinais errados aos mercados e aumentou o risco.
Este cenário deixa em aberto dois caminhos: continuar a fazer de bom aluno lá fora, executando acriticamente as soluções políticas gizadas pelo renascido eixo franco-alemão ou, pelo contrário, fazermos de bom aluno cá dentro e de mau aluno na Europa. O primeiro caminho implica uma interiorização da culpa moral sobre a situação em que nos encontramos; o segundo depende, em primeiro lugar, da aceleração da consolidação das contas públicas, mas requer que este exercício seja combinado com uma democratização das opções europeias, insistindo para que se encontre uma solução sistémica para o euro. A salvação do projeto europeu depende, hoje, da multiplicação de maus alunos em toda a Europa. Maus alunos que, por exemplo, comecem a recusar-se a comprar produtos alemães. Talvez, assim, se perceba que a questão é política e não moral e que a periferia ter vivido acima das suas possibilidades foi também uma necessidade sistémica.
Texto publicado na edição do Expresso de 13 de novembro de 2010
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