Rebenta a Bolha
Em trinta e seis anos de democracia, nunca um Governo português foi capaz de fazer cortes na despesa como aqueles que estão propostos no Orçamento para 2011. Como recordava Bruno Faria Lopes no "i", só uma vez, em 1983, com o Bloco Central, acompanhado pelo FMI, é que a despesa pública total desceu de modo significativo (-1.9%). Desde então, o país foi alternando entre anos em que a despesa cresceu muito (2009); em que diminuiu de modo impercetível (1994); ou em que o crescimento foi controlado (2006). Em 2011, sem uma maioria política que crie condições efetivas para aplicar medidas de austeridade, o Governo propõe-se alcançar um objetivo inédito: cortar cerca de 5% da despesa das administrações públicas.
Com este propósito em pano de fundo, Governo e PSD entretêm-se a jogar uma longa partida de poker aberto, com o país a assistir incrédulo. Tem sido um belo retrato do sistema partidário português. Incapazes de fazer alianças pós-eleitorais, com uma quase total ausência de cultura negocial, o que os partidos fazem é, em lugar de procurar acordos, tentar salvar a face e avaliar a extensão dos recuos de cada uma das partes. Esta semana, quando, com o devido beneplácito presidencial, tudo parecia encaminhado para um acordo essencialmente político e com escasso impacto orçamental, a bolha voltou a rebentar, como se estivéssemos no recreio de uma escola.
No fundo, não é surpreendente: em Portugal, os partidos têm pouca ancoragem social (ou seja, não representam de modo mais ou menos orgânico interesses sociais específicos) e também não se movem propriamente pela defesa estável de um conjunto de políticas. Sobra portanto a tática e o objetivo de chegar o mais cedo possível ao poder - com todas as jogadas devidamente medidas pelas sondagens, que funcionam como uma espécie de oráculo de uma realidade cada vez mais distante. Neste contexto, a existência de entendimentos depende apenas de se encontrarem jogos de soma positiva, no qual todas as partes podem surgir como vencedoras. Ninguém quer assumir os custos da impopularidade
Uma impossibilidade face à dimensão dos cortes que nos esperam, que não poderão deixar de produzir impacto económico e social. A questão não é, por isso, os 400 milhões que ficaram, na altura em que escrevo, a separar Governo e PSD, mas sim saber como é que depois de o Governo se propor fazer um corte de cerca de 4000 milhões de euros, que já se afigura difícil de levar a cabo, o PSD ainda exige um corte adicional, sem que seja capaz de dizer exatamente como e onde é que ele poderia ser feito. Este mantra do corte da despesa é revelador de autismo face às condições políticas e sociais para o concretizar. No fundo, ficamos sem saber se o PSD está iludido ou se nos está a querer iludir. Convenhamos que se juntarmos esta ilusão à perceção de que o Governo tem, de facto, pouca capacidade política para fazer o que se propõe, a sensação é mesmo de vazio.
E é para o vazio que caminhamos: assumimos um compromisso internacional de fazer um ajustamento sem paralelo na nossa história política recente e queremos fazê-lo sem um Governo forte e sem coligações. Como se não bastasse, podemos bem, dentro de semanas, ter de reduzir o défice, mas já sem Governo, sem Parlamento e com um Presidente, de facto, limitado.
Texto publicado na edição do Expresso de 30 de outubro de 2010
Com este propósito em pano de fundo, Governo e PSD entretêm-se a jogar uma longa partida de poker aberto, com o país a assistir incrédulo. Tem sido um belo retrato do sistema partidário português. Incapazes de fazer alianças pós-eleitorais, com uma quase total ausência de cultura negocial, o que os partidos fazem é, em lugar de procurar acordos, tentar salvar a face e avaliar a extensão dos recuos de cada uma das partes. Esta semana, quando, com o devido beneplácito presidencial, tudo parecia encaminhado para um acordo essencialmente político e com escasso impacto orçamental, a bolha voltou a rebentar, como se estivéssemos no recreio de uma escola.
No fundo, não é surpreendente: em Portugal, os partidos têm pouca ancoragem social (ou seja, não representam de modo mais ou menos orgânico interesses sociais específicos) e também não se movem propriamente pela defesa estável de um conjunto de políticas. Sobra portanto a tática e o objetivo de chegar o mais cedo possível ao poder - com todas as jogadas devidamente medidas pelas sondagens, que funcionam como uma espécie de oráculo de uma realidade cada vez mais distante. Neste contexto, a existência de entendimentos depende apenas de se encontrarem jogos de soma positiva, no qual todas as partes podem surgir como vencedoras. Ninguém quer assumir os custos da impopularidade
Uma impossibilidade face à dimensão dos cortes que nos esperam, que não poderão deixar de produzir impacto económico e social. A questão não é, por isso, os 400 milhões que ficaram, na altura em que escrevo, a separar Governo e PSD, mas sim saber como é que depois de o Governo se propor fazer um corte de cerca de 4000 milhões de euros, que já se afigura difícil de levar a cabo, o PSD ainda exige um corte adicional, sem que seja capaz de dizer exatamente como e onde é que ele poderia ser feito. Este mantra do corte da despesa é revelador de autismo face às condições políticas e sociais para o concretizar. No fundo, ficamos sem saber se o PSD está iludido ou se nos está a querer iludir. Convenhamos que se juntarmos esta ilusão à perceção de que o Governo tem, de facto, pouca capacidade política para fazer o que se propõe, a sensação é mesmo de vazio.
E é para o vazio que caminhamos: assumimos um compromisso internacional de fazer um ajustamento sem paralelo na nossa história política recente e queremos fazê-lo sem um Governo forte e sem coligações. Como se não bastasse, podemos bem, dentro de semanas, ter de reduzir o défice, mas já sem Governo, sem Parlamento e com um Presidente, de facto, limitado.
Texto publicado na edição do Expresso de 30 de outubro de 2010
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