Isto pode não acabar bem
Há uma nova lei de ferro da política: os políticos dececionam e mesmo os mais inspiradores acabam por frustrar as expectativas.
Claro que há comportamentos reincidentes e que nada têm de novo. Em Portugal, basta recuarmos até às últimas legislativas para nos recordarmos de promessas inviáveis que, ainda assim, foram feitas. O incumprimento é filho da demagogia e revelador de um conflito que coloca os governantes sob pressão: entre o mandato eleitoral que os obriga a respeitarem programas sufragados e os compromissos a que se encontram vinculados, das obrigações internacionais às consequências de decisões anteriores.
Contudo, quando têm de colocar os seus programas na gaveta e adotar medidas impopulares, os governantes invocam outros motivos - a responsabilidade que é necessária face a alterações profundas no contexto. Parafraseando a formulação de José Sócrates, os políticos justificam a mudança nas suas políticas pelas mudanças no mundo.
Até aqui não há elementos de novidade no atual contexto. Os políticos agem como habitualmente, com os resultados de sempre. Acontece que, como sublinha o politólogo Peter Mair, em artigo recente, "The Political Crisis", há hoje três aspetos novos associados às decisões impopulares dos governos.
Em primeiro lugar, não só o processo de desnacionalização das decisões políticas se intensificou como se perderam formas de sindicância democrática. À perda de soberania dos Estados-nação (o fim do embedded liberalism) juntou-se a perda de soberania dos cidadãos, que deixaram de poder responsabilizar quem decide através do voto. O que se anuncia no novo modelo de governação económico europeu é, a este propósito, não só negativo economicamente como representa uma machadada sem precedentes na dimensão política da construção europeia.
Em segundo lugar, enquanto a perda de soberania diminui drasticamente a capacidade dos executivos para, de facto, governarem, também o grau de autonomia orçamental se reduziu. O lastro das políticas já consolidadas torna a despesa muito rígida, pelo que aos governos, caso queiram fazer diferente, só resta aumentar o endividamento, num contexto em que são obrigados a reduzi-lo.
Finalmente, quando os governos eram obrigados a não cumprir o prometido por força das circunstâncias, o que faziam era procurar apoio junto dos seus apoiantes mais leais, explicando que, embora estivessem a tomar medidas impopulares, estavam a ser responsáveis. Mas, hoje, a lealdade partidária tem declinado e os eleitores fiéis têm sido substituídos por eleitores voláteis e cidadãos cínicos, descrentes dos políticos. Em Portugal, onde o encastramento dos partidos é muito frágil, este recurso é ainda menos viável. No fundo, não há base eleitoral para a retórica da responsabilidade.
No fim, o que sobra é um conjunto de 'governos' presos entre pressões externas para levar a cabo ajustamentos orçamentais profundos e pressões domésticas para aumentar ou manter os níveis de despesa anteriores. O problema é que tudo isto ocorre num contexto em que os políticos já não têm credibilidade, nem dispõem dos instrumentos de governação do passado. Com pouca margem de manobra, a política só pode mesmo dececionar. O risco agora é que também a democracia se revele impopular. Há demasiados sinais de que assim vai ser.
Texto publicado na edição do Expresso de 16 de outubro de 2010
Claro que há comportamentos reincidentes e que nada têm de novo. Em Portugal, basta recuarmos até às últimas legislativas para nos recordarmos de promessas inviáveis que, ainda assim, foram feitas. O incumprimento é filho da demagogia e revelador de um conflito que coloca os governantes sob pressão: entre o mandato eleitoral que os obriga a respeitarem programas sufragados e os compromissos a que se encontram vinculados, das obrigações internacionais às consequências de decisões anteriores.
Contudo, quando têm de colocar os seus programas na gaveta e adotar medidas impopulares, os governantes invocam outros motivos - a responsabilidade que é necessária face a alterações profundas no contexto. Parafraseando a formulação de José Sócrates, os políticos justificam a mudança nas suas políticas pelas mudanças no mundo.
Até aqui não há elementos de novidade no atual contexto. Os políticos agem como habitualmente, com os resultados de sempre. Acontece que, como sublinha o politólogo Peter Mair, em artigo recente, "The Political Crisis", há hoje três aspetos novos associados às decisões impopulares dos governos.
Em primeiro lugar, não só o processo de desnacionalização das decisões políticas se intensificou como se perderam formas de sindicância democrática. À perda de soberania dos Estados-nação (o fim do embedded liberalism) juntou-se a perda de soberania dos cidadãos, que deixaram de poder responsabilizar quem decide através do voto. O que se anuncia no novo modelo de governação económico europeu é, a este propósito, não só negativo economicamente como representa uma machadada sem precedentes na dimensão política da construção europeia.
Em segundo lugar, enquanto a perda de soberania diminui drasticamente a capacidade dos executivos para, de facto, governarem, também o grau de autonomia orçamental se reduziu. O lastro das políticas já consolidadas torna a despesa muito rígida, pelo que aos governos, caso queiram fazer diferente, só resta aumentar o endividamento, num contexto em que são obrigados a reduzi-lo.
Finalmente, quando os governos eram obrigados a não cumprir o prometido por força das circunstâncias, o que faziam era procurar apoio junto dos seus apoiantes mais leais, explicando que, embora estivessem a tomar medidas impopulares, estavam a ser responsáveis. Mas, hoje, a lealdade partidária tem declinado e os eleitores fiéis têm sido substituídos por eleitores voláteis e cidadãos cínicos, descrentes dos políticos. Em Portugal, onde o encastramento dos partidos é muito frágil, este recurso é ainda menos viável. No fundo, não há base eleitoral para a retórica da responsabilidade.
No fim, o que sobra é um conjunto de 'governos' presos entre pressões externas para levar a cabo ajustamentos orçamentais profundos e pressões domésticas para aumentar ou manter os níveis de despesa anteriores. O problema é que tudo isto ocorre num contexto em que os políticos já não têm credibilidade, nem dispõem dos instrumentos de governação do passado. Com pouca margem de manobra, a política só pode mesmo dececionar. O risco agora é que também a democracia se revele impopular. Há demasiados sinais de que assim vai ser.
Texto publicado na edição do Expresso de 16 de outubro de 2010
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