Uma Greve Reveladora
Há invariavelmente um lado de farsa na leitura das greves. Para quem organiza, foram um sucesso sem paralelo (o delirante número de três milhões de grevistas de Carvalho da Silva); para quem está no poder, não se passou quase nada. Mas, além da competição dos números, resta uma greve geral, que tem funções sociais, mas é também reveladora do absurdo político em que operamos.
A greve serviu para contrariar a distância social que persiste entre o espaço público, dominado pela defesa da austeridade, e a experiência concreta dos portugueses que, em lugar de viverem acima das nossas possibilidades, sobrevivem abaixo das suas próprias necessidades. Há um Portugal de baixos salários e de subordinação laboral que está quase sempre ausente do debate. Quarta-feira mostrou-nos esse país e o sindicalismo de base é ainda a forma mais eficaz de representação dos de 'baixo'. A greve foi, de facto, um mecanismo de reequilíbrio das relações de poder, ainda que em moldes diferentes do passado.
Esta greve revelou uma combinação única, que terá efeitos negativos, entre velhos paradoxos do sindicalismo português (a politização) e novos obstáculos (a desnacionalização do poder político).
Do ponto de vista comparativo, Portugal tem níveis reduzidos de sindicalização e valores muito baixos de conflitualidade laboral: poucos trabalhadores admitem já ter feito greve e, com a exceção da administração pública e do sector empresarial do Estado, tem-se assistido a uma diminuição acentuada de greves. Contudo, a escassa relevância dos sindicatos no mundo laboral tem outra face: uma capacidade de mobilização política de base sindical muito forte. Mas esta afirmação do movimento sindical, liderada pela CGTP, é arriscada - em lugar de valorizar o papel dos sindicatos na defesa concreta dos direitos laborais, através da negociação, politiza excessivamente a sua ação. No imediato, serve para aumentar a capacidade de mobilização, mas circunscreve-a a uma base de recrutamento estanque - os que podem fazer greve, que são cada vez menos.
Estas velhas tendências que se têm, nuns casos cristalizado, noutros intensificado, ocorrem num contexto que tem mudado a um ritmo acelerado.
Uma greve geral de base nacional, hoje, só serve para expor a ineficácia das formas de representação política tradicionais. Há uma enorme descoincidência entre o nível a que continua a ser feita a mobilização (nacional) e o nível das decisões políticas (no mínimo, europeu). Esta descoincidência tem um efeito desmobilizador e revela como esta crise é destruidora económica e socialmente, mas tem também um efeito devastador para os mecanismos de representação. O movimento sindical continua a ter capacidade de resistência, mas revela também impotência para mudar as políticas.
A situação em Portugal será particularmente delicada: sem poder recorrer ao capital que decorre de uma tradição negocial enraizada, restará a memória da contestação política contra os Governos, numa altura em que o poder de decisão já não está nas suas mãos. Quando era necessária uma verdadeira internacionalização das formas de mobilização política, é-nos oferecido um movimento sindical preso às suas idiossincrasias nacionais e que opera num quadro que já não existe. É triste, mas a revelação desta tendência será o principal legado desta greve.
Texto publicado na edição do Expresso de 27 de novembro de 2010
A greve serviu para contrariar a distância social que persiste entre o espaço público, dominado pela defesa da austeridade, e a experiência concreta dos portugueses que, em lugar de viverem acima das nossas possibilidades, sobrevivem abaixo das suas próprias necessidades. Há um Portugal de baixos salários e de subordinação laboral que está quase sempre ausente do debate. Quarta-feira mostrou-nos esse país e o sindicalismo de base é ainda a forma mais eficaz de representação dos de 'baixo'. A greve foi, de facto, um mecanismo de reequilíbrio das relações de poder, ainda que em moldes diferentes do passado.
Esta greve revelou uma combinação única, que terá efeitos negativos, entre velhos paradoxos do sindicalismo português (a politização) e novos obstáculos (a desnacionalização do poder político).
Do ponto de vista comparativo, Portugal tem níveis reduzidos de sindicalização e valores muito baixos de conflitualidade laboral: poucos trabalhadores admitem já ter feito greve e, com a exceção da administração pública e do sector empresarial do Estado, tem-se assistido a uma diminuição acentuada de greves. Contudo, a escassa relevância dos sindicatos no mundo laboral tem outra face: uma capacidade de mobilização política de base sindical muito forte. Mas esta afirmação do movimento sindical, liderada pela CGTP, é arriscada - em lugar de valorizar o papel dos sindicatos na defesa concreta dos direitos laborais, através da negociação, politiza excessivamente a sua ação. No imediato, serve para aumentar a capacidade de mobilização, mas circunscreve-a a uma base de recrutamento estanque - os que podem fazer greve, que são cada vez menos.
Estas velhas tendências que se têm, nuns casos cristalizado, noutros intensificado, ocorrem num contexto que tem mudado a um ritmo acelerado.
Uma greve geral de base nacional, hoje, só serve para expor a ineficácia das formas de representação política tradicionais. Há uma enorme descoincidência entre o nível a que continua a ser feita a mobilização (nacional) e o nível das decisões políticas (no mínimo, europeu). Esta descoincidência tem um efeito desmobilizador e revela como esta crise é destruidora económica e socialmente, mas tem também um efeito devastador para os mecanismos de representação. O movimento sindical continua a ter capacidade de resistência, mas revela também impotência para mudar as políticas.
A situação em Portugal será particularmente delicada: sem poder recorrer ao capital que decorre de uma tradição negocial enraizada, restará a memória da contestação política contra os Governos, numa altura em que o poder de decisão já não está nas suas mãos. Quando era necessária uma verdadeira internacionalização das formas de mobilização política, é-nos oferecido um movimento sindical preso às suas idiossincrasias nacionais e que opera num quadro que já não existe. É triste, mas a revelação desta tendência será o principal legado desta greve.
Texto publicado na edição do Expresso de 27 de novembro de 2010
<< Home