Um país 'crisófilo'
Estamos a construir o nosso próprio declínio na discussão que temos no espaço público. Lembrei-me disto ao ler um artigo otimista que o embaixador do Reino Unido, Alex Ellis, publicou no Expresso, no qual, em jeito de despedida, sublinhava dez coisas que nunca deviam mudar em Portugal. Veio-me à memória o modo como, há meses, ele já nos havia descrito como um país 'crisófilo', viciado na crise por instinto.
"As palavras são importantes", afirmava um exasperado Michele Apicella, o alter ego de Nanni Moretti, numa memorável cena de "Palombella Rossa". É mesmo verdade: as palavras importam. São elas que enquadram o modo como vemos o mundo, formatam os nossos objetivos, os planos que fazemos para os concretizar e a avaliação que é feita da sua concretização. Em democracia, a importância das palavras é ainda maior: no fundo, a política é uma conversa que temos uns com os outros no espaço público. Logo, para enfrentar a crise, devemos começar por contrariar o modo deprimente como discutimos o país, abandonar as nossas estruturas mentais e, em lugar de nos entregarmos à crise, contrariar a 'crisofilia'.
E mudar o nosso quadro mental implica, desde logo, afastarmo-nos da falsa dicotomia entre, por um lado, o otimismo que não adere à realidade, em que o Governo se especializou, e, por outro, um discurso pessimista, em plano inclinado, que se tornou hegemónico, mesmo perante o contrafactual, e que em nada contribui para alterar a realidade.
O que me traz de regresso à avaliação do PISA. Tão importante como aquilo que a OCDE nos disse sobre o estado da educação, foi o que nos revelou sobre o modo como o debate público se encontra formatado em Portugal. Um debate que se baseia num conjunto nocivo de premissas: as políticas públicas assentam numa cultura de facilitismo; de nada serve contrariar as desigualdades sociais, tudo o que possa ser feito é ineficaz ou contraproducente; e só há de facto mudança se ela for imposta desde fora, pela União Europeia, pelo FMI ou pela OCDE.
Ora ficámos a saber que não é bem assim. Ao contrário do que nos foi sugerido ao longo de anos a fio no espaço público, há mudanças que fazem a diferença. O que nos obriga a introduzir racionalidade no debate público e a encontrar instrumentos para autonomamente identificarmos quais as políticas que respondem aos nossos défices estruturais, sob pena de estas se tornarem, nuns casos, invisíveis, noutros, serem destruídas às mãos das corporações. É que pode bem dar-se o caso de existirem muitas áreas onde as coisas estão a mudar sem que sejamos capazes de nos aperceber. Aliás, nas últimas semanas fomos surpreendidos por relatórios de entidades insuspeitas que nos revelaram que o nosso PIB per capita tem convergido com a média da União Europeia (Eurostat); que somos dos mais eficientes nos gastos com saúde (OCDE); e os sete maiores bancos a operarem em Portugal certificaram 1000 PME como tendo uma robustez financeira excelente.
O drama é que tudo é ofuscado por uma realidade que vive perdida numa tensão insuportável entre, por um lado, quem vê reformas profundas em todas as medidas governativas e, por outro, o totalitarismo do cinismo de quem acha que o país já está condenado. Para superarmos esta dicotomia temos de começar por reformatar o debate público e contrariar o que Alex Ellis classificou de 'crisofilia'. Em Portugal, é uma tarefa hercúlea.
Texto publicado na edição do Expresso de 23 de dezembro de 2010
"As palavras são importantes", afirmava um exasperado Michele Apicella, o alter ego de Nanni Moretti, numa memorável cena de "Palombella Rossa". É mesmo verdade: as palavras importam. São elas que enquadram o modo como vemos o mundo, formatam os nossos objetivos, os planos que fazemos para os concretizar e a avaliação que é feita da sua concretização. Em democracia, a importância das palavras é ainda maior: no fundo, a política é uma conversa que temos uns com os outros no espaço público. Logo, para enfrentar a crise, devemos começar por contrariar o modo deprimente como discutimos o país, abandonar as nossas estruturas mentais e, em lugar de nos entregarmos à crise, contrariar a 'crisofilia'.
E mudar o nosso quadro mental implica, desde logo, afastarmo-nos da falsa dicotomia entre, por um lado, o otimismo que não adere à realidade, em que o Governo se especializou, e, por outro, um discurso pessimista, em plano inclinado, que se tornou hegemónico, mesmo perante o contrafactual, e que em nada contribui para alterar a realidade.
O que me traz de regresso à avaliação do PISA. Tão importante como aquilo que a OCDE nos disse sobre o estado da educação, foi o que nos revelou sobre o modo como o debate público se encontra formatado em Portugal. Um debate que se baseia num conjunto nocivo de premissas: as políticas públicas assentam numa cultura de facilitismo; de nada serve contrariar as desigualdades sociais, tudo o que possa ser feito é ineficaz ou contraproducente; e só há de facto mudança se ela for imposta desde fora, pela União Europeia, pelo FMI ou pela OCDE.
Ora ficámos a saber que não é bem assim. Ao contrário do que nos foi sugerido ao longo de anos a fio no espaço público, há mudanças que fazem a diferença. O que nos obriga a introduzir racionalidade no debate público e a encontrar instrumentos para autonomamente identificarmos quais as políticas que respondem aos nossos défices estruturais, sob pena de estas se tornarem, nuns casos, invisíveis, noutros, serem destruídas às mãos das corporações. É que pode bem dar-se o caso de existirem muitas áreas onde as coisas estão a mudar sem que sejamos capazes de nos aperceber. Aliás, nas últimas semanas fomos surpreendidos por relatórios de entidades insuspeitas que nos revelaram que o nosso PIB per capita tem convergido com a média da União Europeia (Eurostat); que somos dos mais eficientes nos gastos com saúde (OCDE); e os sete maiores bancos a operarem em Portugal certificaram 1000 PME como tendo uma robustez financeira excelente.
O drama é que tudo é ofuscado por uma realidade que vive perdida numa tensão insuportável entre, por um lado, quem vê reformas profundas em todas as medidas governativas e, por outro, o totalitarismo do cinismo de quem acha que o país já está condenado. Para superarmos esta dicotomia temos de começar por reformatar o debate público e contrariar o que Alex Ellis classificou de 'crisofilia'. Em Portugal, é uma tarefa hercúlea.
Texto publicado na edição do Expresso de 23 de dezembro de 2010
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