Dívida e castigo
A história está repleta de eventos estruturais desencadeados por acontecimentos secundários. A da Europa não é exceção. Quando o jovem Gavrilo Princip disparou sobre o arquiduque Francisco Fernando, poucos antecipariam o início de uma ‘era de catástrofe’ que duraria três longas décadas. Há atos que têm o condão de revelar todas as tensões de um momento e com isso colocam a história em movimento. Por vezes para o bem, na maior parte das vezes para o mal.
As declarações do Comissário europeu Guenther Oettinger, afirmando que “as bandeiras dos pecadores da dívida deveriam ser colocadas a meia haste”, podem bem ser um destes eventos. O que o Comissário fez foi dar voz ao pensamento dominante na Alemanha: a crise do euro deve ser lida à luz de um conto moral em que o descontrolo das dívidas soberanas se resolve com atos punitivos. A narrativa é apelativa, os governos endividaram-se excessivamente, têm de pagar um preço e a austeridade é a única resposta. Fica sugerida a necessidade de uma punição moral para responder a uma década de desvario hedonista.
Perante o poder avassalador deste conto moral, os países “pecadores” têm optado por apontar o dedo ao vizinho do lado, convencidos que assim expiam o crime e aliviam o castigo. “Nós não somos a Grécia” é um mantra que tem sido usado à exaustão, procurando criar a ilusão de que não nos acontecerá o que foi acontecendo à Grécia no último ano e meio. Ora de cada vez que os países da periferia da zona Euro se procuram distanciar da Grécia estão, de facto, a colocar as suas bandeiras a meia-haste.
É evidente que a natureza dos desequilíbrios macroeconómicos portugueses, irlandês, espanhóis ou italianos é muito diferente da dos gregos e diversa entre si. Pelo que daí decorram necessidades de ajustamento distintas. Contudo, “nós somos a Grécia” na medida em que o calvário grego será percorrido por todos os países da periferia da zona Euro. Um percurso feito sobre os escombros do projeto europeu e assente numa espiral de contágio recessivo.
Um ano e meio de sucessivos pacotes de austeridade deveriam obrigar a uma avaliação da estratégia até aqui seguida. Como demonstra a experiência grega, se nada mudar, os países da periferia morrerão da cura: a ausência prolongada de crescimento leva ao incumprimento das obrigações financeiras, inviabilizando o pagamento da dívida.
O que tem ficado demonstrado é que a moeda única é um factor de estrangulamento económico e a causa última dos desequilíbrios dos países da periferia. Ao mesmo tempo que retirou os mecanismos essenciais para os países levarem a cabo ajustamentos macroeconómicos (a desvalorização cambial e o controlo da inflação), não só não criou instrumentos alternativos, como passou a fazer depender qualquer solução dos humores políticos das opiniões públicas. Hoje, ao contrário do anunciado, o euro não tem promovido a estabilidade, mas a perturbação económica. Mais grave, em lugar de aprofundar as solidariedades europeias, tem reforçado os egoísmos. É de novo altura de colocar as bandeiras europeias a meia-haste. Todas.
publicado no Expresso de 17 de Setembro
As declarações do Comissário europeu Guenther Oettinger, afirmando que “as bandeiras dos pecadores da dívida deveriam ser colocadas a meia haste”, podem bem ser um destes eventos. O que o Comissário fez foi dar voz ao pensamento dominante na Alemanha: a crise do euro deve ser lida à luz de um conto moral em que o descontrolo das dívidas soberanas se resolve com atos punitivos. A narrativa é apelativa, os governos endividaram-se excessivamente, têm de pagar um preço e a austeridade é a única resposta. Fica sugerida a necessidade de uma punição moral para responder a uma década de desvario hedonista.
Perante o poder avassalador deste conto moral, os países “pecadores” têm optado por apontar o dedo ao vizinho do lado, convencidos que assim expiam o crime e aliviam o castigo. “Nós não somos a Grécia” é um mantra que tem sido usado à exaustão, procurando criar a ilusão de que não nos acontecerá o que foi acontecendo à Grécia no último ano e meio. Ora de cada vez que os países da periferia da zona Euro se procuram distanciar da Grécia estão, de facto, a colocar as suas bandeiras a meia-haste.
É evidente que a natureza dos desequilíbrios macroeconómicos portugueses, irlandês, espanhóis ou italianos é muito diferente da dos gregos e diversa entre si. Pelo que daí decorram necessidades de ajustamento distintas. Contudo, “nós somos a Grécia” na medida em que o calvário grego será percorrido por todos os países da periferia da zona Euro. Um percurso feito sobre os escombros do projeto europeu e assente numa espiral de contágio recessivo.
Um ano e meio de sucessivos pacotes de austeridade deveriam obrigar a uma avaliação da estratégia até aqui seguida. Como demonstra a experiência grega, se nada mudar, os países da periferia morrerão da cura: a ausência prolongada de crescimento leva ao incumprimento das obrigações financeiras, inviabilizando o pagamento da dívida.
O que tem ficado demonstrado é que a moeda única é um factor de estrangulamento económico e a causa última dos desequilíbrios dos países da periferia. Ao mesmo tempo que retirou os mecanismos essenciais para os países levarem a cabo ajustamentos macroeconómicos (a desvalorização cambial e o controlo da inflação), não só não criou instrumentos alternativos, como passou a fazer depender qualquer solução dos humores políticos das opiniões públicas. Hoje, ao contrário do anunciado, o euro não tem promovido a estabilidade, mas a perturbação económica. Mais grave, em lugar de aprofundar as solidariedades europeias, tem reforçado os egoísmos. É de novo altura de colocar as bandeiras europeias a meia-haste. Todas.
publicado no Expresso de 17 de Setembro