"São as desigualdades, estúpido"
Sazonalmente, a pobreza regressa à agenda mediática e, como sempre, os dados são apresentados de forma estática, sem que seja identificada qualquer dinâmica nas desigualdades em Portugal. O modo como foi divulgado o relatório sobre a situação social na Europa no final da semana passada não foi excepção.
Se olharmos para os indicadores, uma coisa resulta clara: ao contrário do que é frequentemente referido, o principal problema político português é um padrão de desigualdades que não encontra paralelo nas democracias ocidentais. O combate ao desemprego e a promoção do emprego, bem como a disciplina das contas públicas deveriam ser vistas apenas como variáveis instrumentais para Portugal se tornar um país menos desigual. Parafraseando uma frase de Bill Clinton, o problema português “são as desigualdades, estúpido”. A diferença é que aqui o estúpido não é o Governo de cada momento, mas sim a manifesta incapacidade de se promover uma coligação social que traga este tema de modo consequente para o topo da agenda política.
Desse ponto de vista, os alertas mediáticos podem ser boas ajudas se servirem para enfatizar o problema que colectivamente enfrentamos, mas serão certamente péssimos auxílios se, como tende a acontecer, se limitarem a apresentar os dados como se nada tivesse mudado e como se nada, do ponto de vista das políticas públicas, tivesse sido feito nas últimas décadas.
É que de cada vez que se apresentam os dados sobre a pobreza, desvalorizando o conjunto de políticas que Portugal tem desenvolvido, está-se a dar um importante contributo para subestimar o papel da intervenção pública na diminuição das desigualdades. E a verdade é que, como revelam as comparações internacionais, o que faz variar as desigualdades não é apenas a variação no PIB, são, também, as opções de cada país em termos de políticas públicas.
Portugal tem uma taxa de pobreza muito elevada no contexto europeu – em 2006 era de 18%, quando por exemplo na Suécia era de 12%. Acontece que, considerando as taxas de pobreza antes das transferências sociais, a nossa posição não é muito diferente da dos nossos parceiros europeus. Enquanto em Portugal, o risco é de 29%, no caso sueco é de 25%. Este dado serve para demonstrar que a percentagem do produto destinada a despesa social (25% em Portugal e 32% na Suécia) é decisiva para explicar a ‘performance’ de cada país.
Mas um olhar mais fino sobre os dados revela que Portugal tem tido maior capacidade no combate às formas mais severas de pobreza do que face ao conjunto das desigualdades. Desde 1995 até 2006, Portugal fez baixar a intensidade da pobreza total, mas isso tem acontecido muito por força da melhoria da situação dos idosos (de 26% para 17%). Onde Portugal continua a ter maior rigidez é entre os pobres em idade activa (apenas de 31% para 25%).
Esta dinâmica não é independente de, ao contrário do que acontecia antes de 1995, estarmos hoje mais próximos da prática europeia no que toca às políticas vocacionadas para responder à pobreza daqueles que estão fora do mercado de trabalho – de que são exemplos o rendimento mínimo, as prestações familiares com discriminação positiva, os aumentos diferenciais nas pensões baixas e os complementos de pensões com condição de recursos. Mas o sucesso, sempre relativo, no combate à severidade da pobreza, não só não foi independente dos ciclos políticos, como não pode servir de desculpa para continuarmos a ter níveis de desigualdade intoleráveis. Até porque, convém não esquecer, é essa a medida sintética do sucesso de uma governação à esquerda.
Acontece que, se já se tem provado difícil desenvolver políticas de combate à pobreza extrema – basta recordar os ataques pornográficos de que foi alvo o rendimento mínimo –, não é difícil de antecipar o que aconteceria se o combate às desigualdades passasse a ser a prioridade política nacional. Afinal, os instrumentos mais eficazes para combater as desigualdades de rendimentos são conhecidos: aumentar a cobertura da contratação colectiva e tornar os impostos mais progressivos. Ou seja, dar uma nova centralidade aos sindicatos e à negociação e fazer com que as políticas fiscais contrariem a dispersão salarial, redistribuindo a favor dos primeiros vintis de rendimento e disponibilizando recursos para a dinamização de serviços sociais às famílias. Querem apostar que a indignação social que existe em torno da pobreza desapareceria rapidamente?
publicado no Diário Económico.
Se olharmos para os indicadores, uma coisa resulta clara: ao contrário do que é frequentemente referido, o principal problema político português é um padrão de desigualdades que não encontra paralelo nas democracias ocidentais. O combate ao desemprego e a promoção do emprego, bem como a disciplina das contas públicas deveriam ser vistas apenas como variáveis instrumentais para Portugal se tornar um país menos desigual. Parafraseando uma frase de Bill Clinton, o problema português “são as desigualdades, estúpido”. A diferença é que aqui o estúpido não é o Governo de cada momento, mas sim a manifesta incapacidade de se promover uma coligação social que traga este tema de modo consequente para o topo da agenda política.
Desse ponto de vista, os alertas mediáticos podem ser boas ajudas se servirem para enfatizar o problema que colectivamente enfrentamos, mas serão certamente péssimos auxílios se, como tende a acontecer, se limitarem a apresentar os dados como se nada tivesse mudado e como se nada, do ponto de vista das políticas públicas, tivesse sido feito nas últimas décadas.
É que de cada vez que se apresentam os dados sobre a pobreza, desvalorizando o conjunto de políticas que Portugal tem desenvolvido, está-se a dar um importante contributo para subestimar o papel da intervenção pública na diminuição das desigualdades. E a verdade é que, como revelam as comparações internacionais, o que faz variar as desigualdades não é apenas a variação no PIB, são, também, as opções de cada país em termos de políticas públicas.
Portugal tem uma taxa de pobreza muito elevada no contexto europeu – em 2006 era de 18%, quando por exemplo na Suécia era de 12%. Acontece que, considerando as taxas de pobreza antes das transferências sociais, a nossa posição não é muito diferente da dos nossos parceiros europeus. Enquanto em Portugal, o risco é de 29%, no caso sueco é de 25%. Este dado serve para demonstrar que a percentagem do produto destinada a despesa social (25% em Portugal e 32% na Suécia) é decisiva para explicar a ‘performance’ de cada país.
Mas um olhar mais fino sobre os dados revela que Portugal tem tido maior capacidade no combate às formas mais severas de pobreza do que face ao conjunto das desigualdades. Desde 1995 até 2006, Portugal fez baixar a intensidade da pobreza total, mas isso tem acontecido muito por força da melhoria da situação dos idosos (de 26% para 17%). Onde Portugal continua a ter maior rigidez é entre os pobres em idade activa (apenas de 31% para 25%).
Esta dinâmica não é independente de, ao contrário do que acontecia antes de 1995, estarmos hoje mais próximos da prática europeia no que toca às políticas vocacionadas para responder à pobreza daqueles que estão fora do mercado de trabalho – de que são exemplos o rendimento mínimo, as prestações familiares com discriminação positiva, os aumentos diferenciais nas pensões baixas e os complementos de pensões com condição de recursos. Mas o sucesso, sempre relativo, no combate à severidade da pobreza, não só não foi independente dos ciclos políticos, como não pode servir de desculpa para continuarmos a ter níveis de desigualdade intoleráveis. Até porque, convém não esquecer, é essa a medida sintética do sucesso de uma governação à esquerda.
Acontece que, se já se tem provado difícil desenvolver políticas de combate à pobreza extrema – basta recordar os ataques pornográficos de que foi alvo o rendimento mínimo –, não é difícil de antecipar o que aconteceria se o combate às desigualdades passasse a ser a prioridade política nacional. Afinal, os instrumentos mais eficazes para combater as desigualdades de rendimentos são conhecidos: aumentar a cobertura da contratação colectiva e tornar os impostos mais progressivos. Ou seja, dar uma nova centralidade aos sindicatos e à negociação e fazer com que as políticas fiscais contrariem a dispersão salarial, redistribuindo a favor dos primeiros vintis de rendimento e disponibilizando recursos para a dinamização de serviços sociais às famílias. Querem apostar que a indignação social que existe em torno da pobreza desapareceria rapidamente?
publicado no Diário Económico.