Começar de novo
O atoleiro político em que se tornou o Iraque, bem como a dimensão da crise bolsista, classificada pelo (in)suspeito Alan Greenspan como a pior dos últimos cinquenta anos, têm sido frequentemente lidos como paradigma do desastre que foram os anos de George W. Bush como presidente. Ainda que não se deva desvalorizar a capacidade de um homem só para causar tamanhos danos, também convém não sobrevalorizar o papel historicamente negativo de Bush filho.
Na verdade, a administração Bush é o canto do cisne de um longo movimento conservador que rompeu com o consenso promovido pelo republicano Eisenhower em torno do New Deal de F.D. Roosevelt. Partindo de uma pequena base, tornou-se na força política dominante nos últimos 30 anos, expandindo os seus princípios muito para além dos EUA e nunca se circunscrevendo à influência estritamente política. Naquilo que, aliás, foi a melhor das apropriações do conceito de hegemonia de Gramsci, esta combinação de proselitismo político com messianismo ideológico e desregulação económica percebeu bem a importância do “combate cultural”, promovendo as suas ideias em revistas, ‘think tanks’ e, mais tarde, em ‘blogs’. Bush foi apenas um dos homens escolhidos para personificar este movimento.
É por isso que se hoje o mundo não encontra solução viável para o problema criado no Iraque, se os mesmíssimos actores que “regularam” o sistema financeiro nas últimas décadas aparentam lavar as mãos do caos instalado em Wall Street, as causas para que assim seja devem ser buscadas não em George W. Bush, mas, sim, no movimento político que, desde os anos 60, tem como principal objectivo contrariar as conquistas do New Deal.
Este é o argumento principal do economista Paul Krugman, no seu mais recente livro, “The Conscience of a Liberal”. Enquanto o New Deal assentou na valorização do papel regulador do Estado e fez do combate às desigualdades de rendimento o aspecto central da acção política, o objectivo primordial do movimento conservador foi contrariar esta tendência, ou seja, em última análise, limitar o papel das políticas públicas capazes de contrariar as desigualdades na distribuição de rendimento. A herança dos últimos 30 anos está hoje à vista: crescimento económico medíocre, despesa pública descontrolada muito em virtude do esforço militar, caos financeiro e desigualdades próximas do padrão dos anos vinte.
Mas, argumenta ainda Krugman, este movimento foi ainda responsável por um acentuar da polarização política. Enquanto desde os anos 30, crescimento económico e distribuição mais equitativa de rendimentos andaram de mão dada com uma diminuição do antagonismo político entre o campo democrata e republicano, desde o início dos anos oitenta, tem-se vivido tempos de acentuada polarização política. Aquilo a que se assistiu não foi a uma radicalização do centro-esquerda; pelo contrário, numa asserção que é válida para todo o Ocidente, é difícil argumentar que os governos social democratas desde os anos 80 tenham governado mais à esquerda. O mesmo já não é possível de dizer relativamente aos governos de direita, muitos claramente guinaram à direita, radicalizando também o seu discurso político.
Se os sinais de que um ciclo está a acabar são evidentes, a questão que se coloca é o que fazer agora? Uma questão que não se limita à política norte-americana, até porque é sabido que as tendências políticas dos EUA mais cedo ou mais tarde chegam à Europa.
A sugestão de Krugman é olhar de novo para o New Deal. Naturalmente que o que está em causa não é aplicar as soluções que funcionaram no passado, até porque quer a natureza das circunstâncias, quer a dos problemas sociais variou substancialmente. O que importa é sublinhar que sociedades mais igualitárias, onde as classes médias são dominantes, não emergem automaticamente, através da acção natural do mercado. Pelo contrário, têm de ser criadas através da acção política. Essa é, ainda hoje, a principal lição do New Deal: as desigualdades na distribuição de rendimento não são o resultado de forças que não podemos controlar e o reformismo político é um poderoso antídoto para o fatalismo. Desse ponto de vista, nenhuma das dificuldades que hoje enfrentamos é superior às que os EUA enfrentavam nos anos 20. E hoje, como no passado, o objectivo político principal de um movimento progressista deveria ser o combate às desigualdades. Um tema particularmente relevante em Portugal, onde, garantidas as liberdades políticas, a persistência de intoleráveis desigualdades de rendimento continua a ser a principal ameaça ao exercício da liberdade individual.
publicado no Diário Económico.
Na verdade, a administração Bush é o canto do cisne de um longo movimento conservador que rompeu com o consenso promovido pelo republicano Eisenhower em torno do New Deal de F.D. Roosevelt. Partindo de uma pequena base, tornou-se na força política dominante nos últimos 30 anos, expandindo os seus princípios muito para além dos EUA e nunca se circunscrevendo à influência estritamente política. Naquilo que, aliás, foi a melhor das apropriações do conceito de hegemonia de Gramsci, esta combinação de proselitismo político com messianismo ideológico e desregulação económica percebeu bem a importância do “combate cultural”, promovendo as suas ideias em revistas, ‘think tanks’ e, mais tarde, em ‘blogs’. Bush foi apenas um dos homens escolhidos para personificar este movimento.
É por isso que se hoje o mundo não encontra solução viável para o problema criado no Iraque, se os mesmíssimos actores que “regularam” o sistema financeiro nas últimas décadas aparentam lavar as mãos do caos instalado em Wall Street, as causas para que assim seja devem ser buscadas não em George W. Bush, mas, sim, no movimento político que, desde os anos 60, tem como principal objectivo contrariar as conquistas do New Deal.
Este é o argumento principal do economista Paul Krugman, no seu mais recente livro, “The Conscience of a Liberal”. Enquanto o New Deal assentou na valorização do papel regulador do Estado e fez do combate às desigualdades de rendimento o aspecto central da acção política, o objectivo primordial do movimento conservador foi contrariar esta tendência, ou seja, em última análise, limitar o papel das políticas públicas capazes de contrariar as desigualdades na distribuição de rendimento. A herança dos últimos 30 anos está hoje à vista: crescimento económico medíocre, despesa pública descontrolada muito em virtude do esforço militar, caos financeiro e desigualdades próximas do padrão dos anos vinte.
Mas, argumenta ainda Krugman, este movimento foi ainda responsável por um acentuar da polarização política. Enquanto desde os anos 30, crescimento económico e distribuição mais equitativa de rendimentos andaram de mão dada com uma diminuição do antagonismo político entre o campo democrata e republicano, desde o início dos anos oitenta, tem-se vivido tempos de acentuada polarização política. Aquilo a que se assistiu não foi a uma radicalização do centro-esquerda; pelo contrário, numa asserção que é válida para todo o Ocidente, é difícil argumentar que os governos social democratas desde os anos 80 tenham governado mais à esquerda. O mesmo já não é possível de dizer relativamente aos governos de direita, muitos claramente guinaram à direita, radicalizando também o seu discurso político.
Se os sinais de que um ciclo está a acabar são evidentes, a questão que se coloca é o que fazer agora? Uma questão que não se limita à política norte-americana, até porque é sabido que as tendências políticas dos EUA mais cedo ou mais tarde chegam à Europa.
A sugestão de Krugman é olhar de novo para o New Deal. Naturalmente que o que está em causa não é aplicar as soluções que funcionaram no passado, até porque quer a natureza das circunstâncias, quer a dos problemas sociais variou substancialmente. O que importa é sublinhar que sociedades mais igualitárias, onde as classes médias são dominantes, não emergem automaticamente, através da acção natural do mercado. Pelo contrário, têm de ser criadas através da acção política. Essa é, ainda hoje, a principal lição do New Deal: as desigualdades na distribuição de rendimento não são o resultado de forças que não podemos controlar e o reformismo político é um poderoso antídoto para o fatalismo. Desse ponto de vista, nenhuma das dificuldades que hoje enfrentamos é superior às que os EUA enfrentavam nos anos 20. E hoje, como no passado, o objectivo político principal de um movimento progressista deveria ser o combate às desigualdades. Um tema particularmente relevante em Portugal, onde, garantidas as liberdades políticas, a persistência de intoleráveis desigualdades de rendimento continua a ser a principal ameaça ao exercício da liberdade individual.
publicado no Diário Económico.