Façam o favor de se distinguirem
Tem sido difícil encontrar um argumento favorável à proposta de revisão constitucional de Passos Coelho. Do CDS ao Bloco, passando pela "melhoria incontestável" com que Cavaco Silva nos brindou do alto da sua cátedra, o PSD tem sido devidamente fustigado. Pelo caminho, Sócrates e o PS, que viam o seu capital político ser delapidado pela crise e pelas contradições entre o que prometeram nas eleições e a realidade orçamental, encontraram também uma tábua de salvação conjuntural. As críticas fazem sentido: a proposta foi apresentada de modo atabalhoado, o conteúdo revela pouca maturação e, como se não bastasse, Passos Coelho tem revelado um comportamento errático, dividido entre a defesa do projeto e uma sequência de recuos.
Mas, na verdade, se a proposta é, no curto prazo, manifestamente prejudicial para a afirmação eleitoral de Passos Coelho, pode bem revelar-se positiva para a mobilização política em Portugal.
É sabido que uma das principais singularidades do sistema partidário português é a grande proximidade ideológica entre os maiores partidos. No estudo de 2007 "Party Change in Southern Europe", em que se comparavam os partidos dos países da Europa do Sul através do seu posicionamento na escala esquerda-direita, Anna Bosco e Leonardo Morlino concluíam, por um lado, que a distância ideológica entre PS e PSD era bem menor do que, por exemplo, entre o PSOE e o PP em Espanha e, por outro, que tanto o PS como o PSD se ancoravam bem mais à esquerda do que os seus congéneres gregos, o PASOK e a Nova Democracia. Se esta proximidade ideológica pode sugerir alguma propensão para o entendimento, tem contudo uma outra face, bem mais negativa.
Quando a oferta partidária é indistinta, o mais natural é que a mobilização política diminua e o sentido do voto perca relevância. Ora, o que o PSD tem feito nos últimos meses pode prejudicar o partido eleitoralmente, mas terá dado um bom contributo para que PS e PSD se demarquem mais, o que não deixará de ter consequências no tipo de ancoragem que os partidos passam a ter. O PSD, prejudicando-se no curto prazo ao clarificar as águas, é bem capaz de ter feito um enorme favor à política portuguesa. Tanto mais que o tipo de diferenciação que procurou assenta também numa rutura com a agenda tradicional da direita portuguesa. Se, no passado, a distinção se fazia mais nos temas relacionados com costumes, com tiradas conservadoras ou argumentos securitários, projetando uma imagem de autoridade, Passos Coelho procura afirmar-se com uma agenda liberal, demarcando-se onde PS e PSD tradicionalmente estavam mais próximos: no papel do Estado na economia e nos temas sociais.
Podemos considerar que não há um bloco social maioritário que apoie a agenda de Passos Coelho e que o PSD, ao encostar-se muito à direita, diminuiu o seu potencial eleitoral; podemos também pensar que o PSD escolheu o instrumento errado, pois fazia mais sentido rever a sua declaração de princípios do que rever a Constituição, que deve refletir um amplo consenso. Seja como for, a redefinição programática do PSD obrigou também o PS a reposicionar-se e, mesmo que tenha sido feita de forma tosca e confusa, trouxe consigo uma clarificação ideológica que é positiva.
Texto publicado na edição do Expresso de 18 de setembro de 2010
Mas, na verdade, se a proposta é, no curto prazo, manifestamente prejudicial para a afirmação eleitoral de Passos Coelho, pode bem revelar-se positiva para a mobilização política em Portugal.
É sabido que uma das principais singularidades do sistema partidário português é a grande proximidade ideológica entre os maiores partidos. No estudo de 2007 "Party Change in Southern Europe", em que se comparavam os partidos dos países da Europa do Sul através do seu posicionamento na escala esquerda-direita, Anna Bosco e Leonardo Morlino concluíam, por um lado, que a distância ideológica entre PS e PSD era bem menor do que, por exemplo, entre o PSOE e o PP em Espanha e, por outro, que tanto o PS como o PSD se ancoravam bem mais à esquerda do que os seus congéneres gregos, o PASOK e a Nova Democracia. Se esta proximidade ideológica pode sugerir alguma propensão para o entendimento, tem contudo uma outra face, bem mais negativa.
Quando a oferta partidária é indistinta, o mais natural é que a mobilização política diminua e o sentido do voto perca relevância. Ora, o que o PSD tem feito nos últimos meses pode prejudicar o partido eleitoralmente, mas terá dado um bom contributo para que PS e PSD se demarquem mais, o que não deixará de ter consequências no tipo de ancoragem que os partidos passam a ter. O PSD, prejudicando-se no curto prazo ao clarificar as águas, é bem capaz de ter feito um enorme favor à política portuguesa. Tanto mais que o tipo de diferenciação que procurou assenta também numa rutura com a agenda tradicional da direita portuguesa. Se, no passado, a distinção se fazia mais nos temas relacionados com costumes, com tiradas conservadoras ou argumentos securitários, projetando uma imagem de autoridade, Passos Coelho procura afirmar-se com uma agenda liberal, demarcando-se onde PS e PSD tradicionalmente estavam mais próximos: no papel do Estado na economia e nos temas sociais.
Podemos considerar que não há um bloco social maioritário que apoie a agenda de Passos Coelho e que o PSD, ao encostar-se muito à direita, diminuiu o seu potencial eleitoral; podemos também pensar que o PSD escolheu o instrumento errado, pois fazia mais sentido rever a sua declaração de princípios do que rever a Constituição, que deve refletir um amplo consenso. Seja como for, a redefinição programática do PSD obrigou também o PS a reposicionar-se e, mesmo que tenha sido feita de forma tosca e confusa, trouxe consigo uma clarificação ideológica que é positiva.
Texto publicado na edição do Expresso de 18 de setembro de 2010