quinta-feira, janeiro 09, 2014

A incógnita de 2014


Há um ano, quando, na mensagem de ano novo, o Presidente da República sublinhava a necessidade de recuperar a confiança dos portugueses e não apenas a confiança externa dos credores ou enunciava as suas dúvidas em relação à justiça relativa da austeridade do Orçamento para 2013 ou, ainda, alertava para a existência de uma espiral recessiva, conhecia as implicações políticas do seu discurso. Sem espanto, passados uns meses, a crise política pré-anunciada por Cavaco Silva ganharia forma. O problema é que quando a crise surgiu, Cavaco Silva não tinha nenhum recurso, para além de eleições antecipadas, para a resolver. Tendo começado o ano num tom tão crítico e depois não tendo sido consequente com a sua palavra, o Presidente ficou irremediavelmente colado ao Governo.
Houve, a esse propósito, dois momentos marcantes.
Primeiro, na sequência do acórdão do Constitucional, ao receber, em insólita comitiva, Passos Coelho e Vítor Gaspar, durante um fim-de-semana, dando-lhes um voto de confiança. E, mais tarde, ao permitir que assistíssemos em directo à implosão do Conselho de Ministros para, logo depois, viabilizar um Governo que, com a falência da estratégia de Gaspar, tal como reconhecido na carta de demissão do então Ministro das Finanças, ficou órfão de sentido.
Perante o que se passou, a opção de Cavaco Silva por não acelerar os calendários políticos em 2013 teria de deixar marcas. O Presidente ficou diminuído na sua capacidade de acção, deixando de exercer um papel moderador, acima das partes, passando a fazer, de facto, parte da coligação PSD/CDS/troika.
É a esta luz que deve ser lida a mensagem de ano novo de 2014. Ainda assim, tal como aconteceu em 2013, trata-se de uma declaração que não poderá deixar de marcar o ano político.
Naturalmente que a sugestão implícita de que não enviará o Orçamento para fiscalização sucessiva, sendo embora notícia, não é propriamente surpresa. Depois do acórdão sobre a convergência, de acordo com a própria doutrina prudente já enunciada por Cavaco Silva, o que fazia sentido era ter enviado o orçamento para fiscalização preventiva. Não o tendo feito, pedir a fiscalização sucessiva implicava deixar um espectro a pairar sobre o Orçamento demasiado tempo.
O mais relevante é, de facto, a incógnita associada à recuperação de um tema no qual o Presidente tem insistido – a necessidade de consensos em torno do programa cautelar.
É verdade que o Presidente se junta ao Governo quando estabelece uma grande distinção entre cautelar e 2º resgate (sendo que nada sabemos quanto à extensão da condicionalidade num cautelar), mas não deixa também de criticar o Governo quando sublinha a importância de consensos (foi o próprio primeiro-ministro que enfatizou que o PS era dispensável na negociação do pós-troika).
A incógnita é saber se, desta feita, Cavaco Silva vai ser consequente com o seu discurso de ano novo. Se assim for, terá de pressionar PSD, CDS e PS para que haja um acordo em torno do cautelar. Ora, depois do que se passou em Julho, esse acordo só poderá existir com eleições. Terá este Presidente força e autonomia suficientes?

publicado no Expresso de 4 de Janeiro

Três ilusões e uma tragédia


Há um antes e um depois de Gaspar. Com o ex-ministro das Finanças, o Governo tinha uma estratégia – desastrosa, mas ainda assim uma estratégia; com a dupla Passos/Portas aos comandos, o Governo passou a mover-se apenas pela tática. Não por acaso, com este novo contexto as coisas aparentam funcionar melhor. Mas é apenas uma aparência e tem explicação: o reino da tática é o terreno onde primeiro-ministro e vice se sentem confortáveis. O problema é que, com o predomínio da tática, estão a alimentar-se três ilusões que resultarão numa tragédia.
A primeira das quais é a de que, terminado o programa de assistência financeira, recuperaremos a soberania. Hoje não sabemos quase nada sobre o que é um “programa cautelar” mas o que sabemos – até por aquilo que se passou com as pré-negociações com a Irlanda – é que ao pós-troika não corresponde autonomia política. Não apenas porque a nossa capacidade de financiamento continuará dependente de auxílio externo mas, essencialmente, porque o nível de intromissão nas opções do nosso Governo – seja ele qual for – permanecerá muito significativo. A Irlanda não quis um programa cautelar porque não aceitou que Comissão e BCE definissem qual a estratégia que o Governo irlandês deveria seguir. Bem pode Paulo Portas inventar um relógio em contagem decrescente que o que nos espera depois de junho é menos diferente do que se quer fazer crer.
Igualmente perniciosa é a sucessão de avaliações que sugere que o programa português está a funcionar. O sucesso português é um artifício necessário para a troika que não quer e não pode aceitar um falhanço. O problema é que a estratégia de austeridade expansionista protagonizada por Gaspar falhou – o que, aliás, foi reconhecido na carta de demissão – e, entretanto, o Governo alterna momentos em que finge que mudou de rumo (aposta no crescimento) com outros em que prossegue a mesma estratégia (OE2014). Os factos são, contudo, cruéis: em três anos o PIB recuou 8 mil milhões de euros; a dívida não parou de crescer; os juros não baixam e a taxa de desemprego disparou enquanto as desigualdades se agudizam.
Finalmente a ilusão de que o Governo age obrigado pela troika, procurando resistir às suas imposições. Nada de mais falso: a troika foi sempre o que o Governo quis que ela fosse e a autonomia estratégica entre as duas partes é escassa. Pelo contrário, o Governo usa a troika como mecanismo de amplificação selectiva das suas opções. O triste espectáculo do presidente da Comissão, o português José Manuel Barroso, a insurgir-se contra o Tribunal Constitucional ou Draghi a invocar os riscos orçamentais resultantes dos acórdãos estão aí para mostrar como a troika é uma extensão do Governo e o Governo uma extensão da troika.
Estas três ilusões confluem para uma enorme tragédia. Não apenas nada de essencial mudará depois do verão, como o prosseguimento do caminho de devastação seguido nos últimos anos será uma inevitabilidade, reforçado por uma coligação entre vontade política nacional com constrangimentos europeus que não se vê como possam ser superados.
publicado no Expresso de 28 de Dezembro 

Treze activistas radicais?


O impacto político do chumbo do Tribunal Constitucional à convergência retroactiva das pensões da CGA é incomensuravelmente superior ao seu efeito orçamental. A questão que se coloca, agora, é saber se o Governo, desta vez, aprende ou se pelo contrário vai insistir em opções inconstitucionais. O bom aluno da troika já chumbou nove vezes no Tribunal Constitucional, o que, no mínimo, deveria levar à prescrição.
Até ver, a escolha foi sempre a mesma: insistir em soluções inconstitucionais, responsabilizar o Tribunal Constitucional pelos falhanços orçamentais e, logo depois, de forma provocatória, subir a parada. Convém, aliás, recordar que esta medida, violadora do princípio da proteção da confiança (um dos alicerces de qualquer regime democrático e liberal), já era, ela própria, um plano B, gizado para substituir outras medidas, igualmente violadoras da lei fundamental.
Há naturalmente um problema político que se coloca no curto prazo. Vai o Governo fazer um orçamento retificativo, quando o Orçamento do Estado nem sequer foi promulgado, ou, pelo contrário, vai esperar que o Tribunal Constitucional se pronuncie relativamente às normas do orçamento que suscitam dúvidas? Nessa perspetiva, a posição prudente que o Presidente tem tido, escolhendo requerer a fiscalização sucessiva do orçamento, é, hoje, um factor de incerteza. É fundamental que se apurem as inconstitucionalidades do orçamento em toda a sua extensão quanto antes.
Mas a implicação política fundamental desta decisão é que demonstra, caso houvesse dúvidas, que o ativismo radical está isolado em São Bento, enquanto há um amplo consenso em Portugal entre reformistas moderados, respeitadores da lei fundamental. Ao contrário do que foi sendo sugerido, no Palácio Ratton não moram activistas radicais, nem sequer um conjunto de juízes movidos de acordo com as preferências de quem os indicou para o lugar que ocupam. O que a decisão demonstra é que o Tribunal Constitucional é um factor de moderação, logo de proteção face a um Governo de revolucionários.
Em tudo isto, o elemento mais perturbador deste processo é a forma como as instituições internacionais da troika se predispuseram a enveredar pela estratégia de pressão sobre o TC. Ainda assim, um Governo, por mais marcas negativas que possa deixar, passa, a UE, o BCE e o FMI continuam. Ao se colocarem na posição bizarra de acusarem de radicalismo treze juízes que tomaram uma decisão expressiva e unânime prestaram um péssimo serviço à sua credibilidade e legitimidade.
No fim, sobra a perplexidade de sempre: o Governo português podia ter-se aliado à Constituição contra a troika, criando assim um mecanismo de proteção política de todos nós. Optou sistematicamente por procurar na troika um aliado contra a Constituição e contra a nossa soberania. Não há bandeiras na lapela que consigam ocultar esta opção.
 publicado no Expresso de 20 de Dezembro

segunda-feira, dezembro 16, 2013

A receita para o desastre


A política portuguesa parece estar bloqueada num circuito fechado. Semana sim, semana não, surge um apelo salvífico ao consenso para, logo depois, se assistir a um extremar, se possível ainda maior, de posições. Desta feita foi Rui Rio quem afirmou não ver “hipóteses nenhumas de sair desta crise política - e não económica - sem um entendimento entre os partidos do regime”.
Vale a pena tentar perceber qual a razão para termos esta relação fetichista com os consensos, ao mesmo tempo que somos incapazes de concertar posições nas políticas.
Não é por acaso que quem busca um espaço de afirmação política opta, sistematicamente, pelos pedidos de entendimentos. Há de facto em Portugal uma desconfiança em relação à dissensão e à politização das opções que favorece os discursos que cavalgam a desconfiança face aos partidos e que se procuram colocar acima da política. É, aliás, uma tendência com lastro histórico. De tal forma que a encontramos nos lugares mais insuspeitos. A semana passada, na comemoração dos 40 anos do Congresso da Oposição Democrática de Aveiro, a historiadora Luísa Tiago Oliveira recordava que no congresso de 1973, entre as teses sobre organização do Estado, era reivindicada a legalização dos partidos, a par com as organizações juvenis, as coletividades e os cineclubes. Como desvalorização simbólica dos partidos como espaço de representação estamos conversados.
Parece, por isso, paradoxal que os apelos não se traduzam em consensos de facto. Mas há razões para que assim seja.
Em Portugal, procuramos entendimentos com base em posições ideológicas em lugar de procurá-los em torno de políticas concretas (que são, naturalmente, emanações de preferências ideológicas). Ora, enquanto as discussões ideológicas tendem a favorecer o imobilismo ou o extremar de posições, a discussão sobre políticas, se for baseada na informação factual e no conhecimento, torna o diálogo possível. Mais, um esforço de concertação – que é diferente do consenso – permite preservar distinções programáticas enquanto favorece a estabilidade das políticas.
Um contexto em que a política é desvalorizada e em que somos incapazes de valorizar a avaliação das políticas (como revela, por exemplo, o silêncio do Ministro Crato face aos resultados do relatório PISA) é o caldo perfeito para que os apelos ao consenso coexistam com instabilidade nas políticas e uma tendência para ignorar os legados, desmantelando programas que, podendo estar a funcionar, são substituídos.
Vivemos de facto uma crise política. Mas uma crise que assenta numa combinação de fanatismo ideológico que inviabiliza o diálogo com uma propensão notável para desconsiderar os factos. A receita para o desastre assenta num espírito de cruzada insensível aos sinais dados pela realidade. Precisamos, de facto, de concertação, mas a primeira coisa a fazer é voltar a considerar a realidade como uma variável relevante. Será pedir muito?
 publicado no Expresso de 14 de Dezembro

Estes alemães que nos governam


Era uma vez um burro, um cão, uma gata e uma galinha que, passada a idade ativa, se haviam tornado redundantes. Nas quintas onde serviam, o seu trabalho já não era útil. Na fábula dos irmãos Grimm, “Os músicos de Bremen”, os animais revoltam-se contra os patrões e fazem-se à estrada. Pelo caminho, enfrentam dificuldades, mas, com a música que cantam juntos, são capazes de vencer as agruras do caminho e encontrar liberdade na cidade.
Mais de um século passado do texto original, Chico Buarque adaptou uma versão italiana para escrever o mais notável musical infantil em português, “Os Saltimbancos”. Para muitos dos que nasceram na década de 70, as canções irresistíveis de “Os Saltimbancos” devolvem-nos ecos inesquecíveis da infância. Mas, se para os irmãos Grimm a luta dos animais simbolizava uma libertação dos resquícios do feudalismo que persistiam no século XIX, para Chico a história era outra. Os animais eram símbolos de várias classes sociais que se rebelavam contra a ditadura. Hoje, podemos ler em “Os Saltimbancos” outras narrativas, mas persiste a tensão entre os de “baixo” e os de “cima”. Entre os redundantes (os idosos que já não são precisos ou os trabalhadores que vivem acima das suas possibilidades) e aqueles que são sempre lestos a exigir sacrifícios aos outros mas muito eficazes a viver imunes a essas mesmas exigências.
Podemos bem pensar em “Os Saltimbancos” quando observamos as transformações políticas na Europa. Numa daquelas ilusões ingénuas que alguns vão alimentando, criou-se uma grande expectativa de que a eleição de Hollande em França implicaria uma alteração na paisagem política europeia. Quando se percebeu que de França não viriam bons ventos, as expectativas mudaram de paragem e a esperança foi colocada na ida para o poder do SPD, na Alemanha. No entanto e como seria de esperar, a grande coligação alemã continuará a percorrer o caminho míope de Merkel.
Que assim seja é compreensível. Entre os interesses imediatos do seu eleitorado e uma visão estrutural para a Europa, o SPD escolheu os seus eleitores. O problema não são os alemães, mas os alemães que nos governam em Portugal, abdicando de defender os nossos interesses.
Os casos são muitos, mas é difícil encontrar um exemplo mais paradigmático do que aquele dado esta semana pelo secretário de Estado – note-se bem – dos Assuntos Europeus. Numa mistela de germanofilia com neo-conservadorismo, o governante foi à Grécia e não lhe ocorreu nada melhor do que opor-se a uma coligação dos países do sul para inverter a política europeia. Saiu de lá com o epíteto de “o alemão”. Regressado, fez graçolas sobre o assunto nas redes sociais.
Numa das canções de “Os Saltimbancos”, os animais cantam “junte um bico com dez unhas/quatro patas, trinta dentes/E o valente dos valentes/Ainda vai-te respeitar/Todos juntos somos fortes/Somos flecha e somos arco”. Se há leitura a fazer das eleições francesas e alemãs é que dependemos de nós, pelo que devíamos aprender a lição dos “músicos de Bremen”.
“Os Saltimbancos” é um musical infantil que está em cena no Teatro Experimental de Cascais e que deve ser visto por todos os adultos.

publicado no Expresso de 7 de Dezembro