Uma culpa constitucional
Há
uns meses, um documento da J. P. Morgan sobre o ajustamento na zona euro não
hesitava em sublinhar que os sistemas políticos nos países da periferia foram
“estabelecidos na sequência das ditaduras e definidos por essa experiência. As
constituições tendem a ter uma influência socialista forte, refletindo a força
política que os partidos de esquerda conquistaram após a derrota do
fascismo". Para depois concluir, com uma candura assustadora, que estes
países tiveram um sucesso apenas parcial nas suas reformas orçamental e
económica, sendo apontados, no exemplo português, os “constrangimentos” impostos
pela Constituição, que, entre outras
malfeitorias, protege os direitos laborais e concede o direito a protestar caso
mudanças indesejadas ocorram no status
quo político (sic).
É
ao mesmo tempo surpreendente que haja quem se dedique a análises que assentam
na descoberta peregrina de que os momentos fundacionais dos regimes são
histórica e politicamente contingentes (será possível compreender a
Constituição norte-americana sem ter em conta a experiência colonial
britânica?) e que faça uma leitura pueril dos bloqueios económicos e
financeiros que os países da zona euro enfrentam. Poderia ser apenas
enternecedor mas, como se vê pela discussão que continua a decorrer em
Portugal, são argumentos que devem mesmo ser levados a sério.
Na
verdade, as sete revisões constitucionais ocorridas desde a transição para a
democracia já expurgaram a influência material socialista do texto fundamental
e não há nenhum bloqueio sério à reforma do nosso Estado Social alicerçado na
Constituição, como aliás é provado pela jurisprudência do Tribunal. Estamos, na
verdade, perante desculpas que servem para desresponsabilizar o Governo e a
Europa pela sua negação da natureza da crise e incompetência para encontrar
respostas eficazes aos problemas que enfrentamos.
Se
nos cingirmos ao conjunto de acórdãos do Tribunal Constitucional que declararam
a inconstitucionalidade de medidas apresentadas pelo Governo, a questão é ainda
mais clara. Os chumbos do TC não se devem a nenhuma pretensa idiossincrasia
socialista da Constituição, pelo contrário, radicam em princípios que fazem
parte de todas as constituições das democracias ocidentais – igualdade,
proporcionalidade e segurança jurídica.
Numa
altura em que se voltou a falar de um novo resgate, e foram afastados os
eufemismos utilizados durante um par de meses (“pós-troika”; programa
cautelar), não deixa de ser revelador que se procure fazer da Constituição ou,
na versão alucinada do primeiro-ministro, da falta de “bom-senso” dos juízes do
TC, a causa para o falhanço do programa de ajustamento. Infelizmente, o
problema é sempre o mesmo: estamos perante uma estratégia que não funciona nem
pode funcionar. A Constituição não passa do último dos bodes expiatórios
mobilizados pelos arquitetos intelectuais da estratégia austeritária em curso
(as J.P. Morgan deste mundo) e pelos seus diligentes implementadores, do
inenarrável Dijsselbloem no Eurogrupo ao primeiro-ministro que nos coube em sorte.
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