segunda-feira, outubro 14, 2013

O regresso dos Zombies


Tornou-se difícil compreender a crise atual sem prestar atenção a um ramo particularmente popular da ciência económica: “a economia zombie”. A expressão, cunhada por John Quiggin, reflete a forma como algumas ideias económicas não morrem, mesmo quando revelam inconsistências lógicas decisivas e falham de forma brutal. A austeridade expansionista, um eufemismo para “consolidação orçamental amiga do crescimento”, é talvez a mais popular, e também a mais perigosa, destas ideias. Falhou, continua a falhar, mas ainda assim regressa, como se de um morto-vivo se tratasse.
Lembrei-me, uma vez mais, da importância deste ramo da economia quando, esta semana, através de uma notícia do Jornal de Negócios, se ficou a saber que o Governo manipulou grosseiramente os dados da evolução dos salários nos últimos anos de forma a que os cortes salariais parecessem ter sido bastante mais reduzidos do que na realidade foram. Em dados enviados ao FMI (ou pedidos pelo FMI já devidamente “martelados”, pouco importa), o Governo informou de que somente 7% dos trabalhadores tiveram cortes nos salários em 2012, quando, na realidade (lá está, a realidade sempre a regressar), 27% dos trabalhadores viram os seus salários cortados, enquanto 45% os viu estagnar.
Dir-me-ão que há um longo histórico de governos a manipular dados estatísticos. É verdade. Os números são armas de combate político que permitem criar uma ilusão em torno da realidade. Acontece que, neste caso, o que foi manipulado remete para o âmago da estratégia do Governo e das troikas ideológicas que o acompanham: o problema da nossa economia resulta de excesso de rigidez, seja do lado da regulação do mercado de trabalho, seja do lado salarial. Como não hesitariam em dizer, temos leis laborais acima das nossas possibilidades e, claro, salários demasiado altos. Em teoria, é isso que explicaria o desemprego elevado com que hoje estamos confrontados.
Qual é o problema destas asserções? São desmentidas pela realidade concreta dos últimos anos. Por um lado, de acordo com a OCDE, a nossa legislação laboral foi a que mais se flexibilizou, não fazendo já parte das mais rígidas; por outro, ao contrário do que o Governo tenta fazer crer, os nossos salários já se desvalorizaram mais do que nos é dito.
O drama é que, depois de aplicada com desvelo a terapia defendida por muitos com uma crença messiânica, o desemprego disparou, o défice não baixa e a dívida não para de crescer. Aterrador nisto tudo é que perante um falhanço colossal e quando pensamos que estamos face a ideias económicas já mortas, elas regressam, como zombies, prontas a assombrar-nos. Faz sentido. Afinal, quando a realidade não se conforma com as nossas doutrinas, literalmente maradas, há que contornar a realidade.
Sabem o que é que o FMI se prepara para defender na 8ª avaliação do memorando, concretizando os sonhos do Governo? Que é preciso insistir nos cortes salariais. Os tais que não foram suficientes, até porque assentaram em valores “martelados”. Não há dúvida que estamos perante gente perigosa, movida por ideias perigosas.
 publicado no Expresso de 30 de Agosto