E serviu para quê?
Chega a ser comovente
assistir aos apelos compungidos dos porta-vozes da maioria para que a troika mude. Sabemos que a memória é
curta, mas não curta o suficiente para esquecer que, há pouco mais de dois
anos, os mesmíssimos protagonistas rasgavam as suas vestes a caminho do
aeroporto para receberem de braços abertos um programa redentor que transformaria
estruturalmente o país. Os resultados estão agora à vista.
Há, desde logo, uma enorme
diferença entre o que então nos era dito e o que agora é dito sobre o que então
nos era dito. Parece confuso mas infelizmente não é.
O memorando de ajustamento –
o tal programa que Passos Coelho, com a impreparação que o caracteriza,
considerava estar aquém do programa do PSD – propunha-se corrigir os nossos
desequilíbrios macroeconómicos e recuperar a credibilidade externa do país. De
acordo com o memorando, em 2014 a dívida estaria a baixar, o défice ficaria nos
2,3%, o desemprego seria de 12,5% e a economia recuaria 0,3% ao longo da
vigência do programa. É penoso atualizar estes valores.
O caminho para a salvação
era linear. Uma consolidação orçamental feita rapidamente e com cortes abruptos
na despesa teria um efeito expansionista, na medida em que os efeitos positivos
gerados pela determinação política revelada por um Governo capaz de cortar
serviriam para contrariar o impacto recessivo do frontloading. Portugal foi apenas mais uma cobaia numa longa série
de experiências deste género condenadas ao fracasso.
Há uma explicação menos
delirante para a opção tomada. Para os
“austeritários realistas” (bem sei que é uma contradição nos termos), a
estratégia orçamental estava condenada ao fracasso, mas o ajustamento tinha de
ser feito para convencer os mercados. O que importava era recuperar a
credibilidade, mesmo que esta dependesse da credulidade externa. Como se vê
pelos anúncios de degradação do rating
da República, não é possível ficcionar a realidade durante muito tempo.
Agora, quando até os autores
intelectuais e materiais da estratégia procuram lavar as mãos e defendem – como
fez o FMI – que a austeridade demasiado rápida pode ser autodestrutiva e que a
confiança não desempenhou um papel relevante, há uma pergunta que sobra: toda
esta destruição serviu exatamente para quê?
Há a este propósito uma
recomendação plena de cinismo que deve ser recordada: “nunca se deve
desperdiçar uma boa crise”. Esta crise, não tendo contribuído para equilibrar
as contas públicas, para reformar a nossa economia política ou para corrigir
desigualdades nos vários mercados, tem sido instrumental.
No fundo, foi uma
oportunidade para alterar as relações de poder na sociedade portuguesa, favorecendo
uns e enfraquecendo outros. Sem a crise como pretexto não teria seria possível
implementar uma agenda ideológica que desequilibrasse as relações laborais a
favor dos empregadores; que, invocando a liberdade como pretexto, degradasse a
escola pública; que afastasse as classes médias do Estado Social e que fizesse
do empobrecimento o objectivo central de todas as políticas.
publicado no Expresso de 21 de Setembro
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