segunda-feira, outubro 14, 2013

E serviu para quê?


Chega a ser comovente assistir aos apelos compungidos dos porta-vozes da maioria para que a troika mude. Sabemos que a memória é curta, mas não curta o suficiente para esquecer que, há pouco mais de dois anos, os mesmíssimos protagonistas rasgavam as suas vestes a caminho do aeroporto para receberem de braços abertos um programa redentor que transformaria estruturalmente o país. Os resultados estão agora à vista.
Há, desde logo, uma enorme diferença entre o que então nos era dito e o que agora é dito sobre o que então nos era dito. Parece confuso mas infelizmente não é.
O memorando de ajustamento – o tal programa que Passos Coelho, com a impreparação que o caracteriza, considerava estar aquém do programa do PSD – propunha-se corrigir os nossos desequilíbrios macroeconómicos e recuperar a credibilidade externa do país. De acordo com o memorando, em 2014 a dívida estaria a baixar, o défice ficaria nos 2,3%, o desemprego seria de 12,5% e a economia recuaria 0,3% ao longo da vigência do programa. É penoso atualizar estes valores.
O caminho para a salvação era linear. Uma consolidação orçamental feita rapidamente e com cortes abruptos na despesa teria um efeito expansionista, na medida em que os efeitos positivos gerados pela determinação política revelada por um Governo capaz de cortar serviriam para contrariar o impacto recessivo do frontloading. Portugal foi apenas mais uma cobaia numa longa série de experiências deste género condenadas ao fracasso.
Há uma explicação menos delirante para a opção tomada. Para  os “austeritários realistas” (bem sei que é uma contradição nos termos), a estratégia orçamental estava condenada ao fracasso, mas o ajustamento tinha de ser feito para convencer os mercados. O que importava era recuperar a credibilidade, mesmo que esta dependesse da credulidade externa. Como se vê pelos anúncios de degradação do rating da República, não é possível ficcionar a realidade durante muito tempo.
Agora, quando até os autores intelectuais e materiais da estratégia procuram lavar as mãos e defendem – como fez o FMI – que a austeridade demasiado rápida pode ser autodestrutiva e que a confiança não desempenhou um papel relevante, há uma pergunta que sobra: toda esta destruição serviu exatamente para quê?
Há a este propósito uma recomendação plena de cinismo que deve ser recordada: “nunca se deve desperdiçar uma boa crise”. Esta crise, não tendo contribuído para equilibrar as contas públicas, para reformar a nossa economia política ou para corrigir desigualdades nos vários mercados, tem sido instrumental.
No fundo, foi uma oportunidade para alterar as relações de poder na sociedade portuguesa, favorecendo uns e enfraquecendo outros. Sem a crise como pretexto não teria seria possível implementar uma agenda ideológica que desequilibrasse as relações laborais a favor dos empregadores; que, invocando a liberdade como pretexto, degradasse a escola pública; que afastasse as classes médias do Estado Social e que fizesse do empobrecimento o objectivo central de todas as políticas.
 publicado no Expresso de 21 de Setembro