A nacionalização das autárquicas
Quem tenha acompanhado a cobertura televisiva da campanha
autárquica ficou com a sensação de que os cinco líderes dos partidos com
representação parlamentar eram, simultaneamente, candidatos à presidência de
308 municípios. Este facto resultou, em importante medida, de uma decisão
obtusa da Comissão Nacional de Eleições que contribuiu para nacionalizar as
autárquicas e não deixará de ter efeitos no domingo.
Num contexto como o que vivemos, em que a crise económica e
social dá sinais de se estar a transformar numa crise institucional e de
regime, a diluição nacional de centenas de disputas locais é, em si, factor de empobrecimento.
O poder local é uma malha de segurança do regime democrático, não apenas por
força da relação de proximidade que aí se estabelece entre quem é eleito e quem
elege mas também porque a larguíssima maioria dos portugueses que tem
participação política activa fá-lo ao nível local – em Juntas de Freguesia,
Assembleias Municipais ou Câmaras. Objectivamente, assistiu-se nesta campanha a
uma desvalorização do papel desempenhado na preservação do regime por todos
estes cidadãos.
Mas se, por norma, as leituras políticas nacionais das
autárquicas são difíceis, neste domingo estaremos face a uma situação paradoxal
que representa um risco acrescido.
Se recuarmos um par de meses, a discussão política
prendia-se de facto com as eleições locais. Então, os temas eram a limitação de
mandatos; a forma como os candidatos do PSD procuravam esconder a sua filiação
e ligação ao Governo; ou a ausência de candidatos com projecção nacional no PS.
Entretanto, a cobertura mediática nacionalizou as eleições e nas últimas duas
semanas discutiram-se as dissonâncias nos discursos do primeiro-ministro e do
vice, a iminência de um 2º resgate e o regresso da troika.
Esta mudança de enfoque temático teve consequências. O
processo de nacionalização das autárquicas, ao oferecer mediaticamente uma
grelha de leitura política nacional, parece fomentar o voto de protesto. Se o
tema é a governação e se o primeiro-ministro surge, um sem-número de vezes, a
aproveitar palcos locais para dirimir os conflitos internos ao conselho de
ministros ou para tentar encontrar um bode expiatório para o falhanço da sua
estratégia, é natural que no dia 29 se assista a um referendo ao Governo.
A questão é que pode haver uma contradição entre a grelha
de leitura política que resulta da cobertura mediática e o que de facto vai
ocorrer quando os portugueses votarem. É de esperar muito voto de protesto, mas
é também muito provável que este coexista com dinâmicas locais, pouco visíveis
e relativamente imunes ao descontentamento com a governação. Se a isto somarmos
a incerteza que decorrerá da existência de um número significativo de
independentes com possibilidades de vitória, bem como do surpreendente crescimento
do PCP a sul do Tejo, pode bem acontecer que, quando se for procurar o esperado
crescimento eleitoral do maior partido da oposição à custa da queda dos
partidos de Governo, ele não apareça.
publicado no Expresso de 29 de Setembro
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