Desfazendo Evidências
Com a abertura do ano lectivo e com o relatório da OCDE divulgado na semana passada, a educação foi de novo notícia. Voltámos a saber que o nosso nível de escolaridade é o mais baixo da OCDE, atrás da Turquia, com mais de 30 anos de atraso em relação à média e uma eternidade de quase um século face aos países escandinavos. Este é o cenário grotesco em que vivemos, um cenário que aliás se tem mantido constante. Basta recordar que já em 1897, num Manifesto subscrito, entre outros, por Bernardino Machado, se escrevia, perante os primeiros dados estatísticos comparativos, que “o Portugal de tradições orgulhosas, o descobridor da Índia, está, pela instrução, muito abaixo da Turquia”. Assim era no final do século XIX e assim se mantém hoje.
Mas, com o regresso da educação à agenda mediática, chegaram também muitas das “evidências” em que se baseia o discurso sobre o tema. Se há terreno onde imperam os “achismos”, opiniões baseadas em pseudo-evidências, sem sustentação empírica e cuja veracidade assenta na sua repetição ao longo dos tempos, esse é o da educação. Era, por isso, importante que, mais do que repetirmos debates fundados em dicotomias improdutivas, fossemos capazes de cortar com o senso comum que contamina o campo da educação.
É este, em parte, o propósito do livro “Evidentemente - histórias da educação” de António Nóvoa, publicado pelas Edições ASA (2005): superar as oposições e as banalidades “irritantemente óbvias, mas sempre repetidas como se fossem novidade” em que assentam as discussões sobre as coisas da educação. O exercício é, a um tempo, simples e sofisticado. Através de 50 textos, cada um de uma página, ilustrados com imagens, procura-se de modo assumidamente incompleto traçar a genealogia de muitas das discussões sobre educação em Portugal.
Lidas as páginas, o que perpassa é a ideia de que, ao longo de dois séculos, se discutiu invariavelmente da mesma maneira, como se fosse impossível acumular conhecimento e valorizar as realizações que, de facto, ocorreram. Como escreve Nóvoa, “quando se trata de educação, nenhum político tem dúvidas, nenhum comentador se engana, nenhum português hesita. Palavras gastas. Inúteis. Banalidades. Mentiras. O que é evidente, mente. Evidentemente.” Dois exemplos paradigmáticos: a ignorância dos alunos e o atraso educacional.
Sendo difícil situar com exactidão o período em que se generalizou a ideia de que os alunos estão cada vez mais mal preparados, a verdade é que se trata de um discurso há muito presente. Se os alunos são cada vez mais ignorantes, tal deveria acontecer por relação a um momento anterior, em que supostamente estariam mais bem preparados. Acontece que, desde finais do século XIX, se diz que os alunos sabem sempre menos. O que hoje se ouve frequentemente, já se ouvia no passado. Por exemplo, em 1947, João Anglin escrevia, “quem anda envolvido nas lides do ensino sabe a dose de benevolência que é preciso empregar para não excluir maior número de alunos, dado o grau de preguiça e de indigência mental a que se chegou”. No livro, as referências similares são muitas, dando corpo a um discurso passa-culpas que persiste.
Desde meados do século XIX que o atraso de Portugal surge directamente ligado ao retrato educativo do país. Vamo-nos “descobrindo, periodicamente, um país atrasado. Fixamos metas imaginando os outros países parados. Por isso, quando as cumprimos, constatamos perturbados que a distância que nos separa da ‘civilização’ é cada vez maior”. Hoje, estamos tão pessimistas como sempre, basta lembrar o que escreveu Agostinho de Campos, em 1933: “de quando em quando, ouve-se por aí, muito a sério e em tom de profundo convencimento: precisamos de uma reforma geral do ensino... melhor seria dizer, logo de uma vez: faz-nos falta um milagre da nossa senhora de Fátima.”
É por isso que, como parece sugerir Nóvoa, o caminho da mudança dever-se-ia basear mais na reforma do que já existe do que na invenção do que poderá ser. E este movimento deveria assentar menos no voluntarismo político – que insiste em impor reformas legislativas a partir do centro – e mais na dotação das escolas com capacidades autónomas de inovação e de desenvolvimento. Na educação, como em tudo o resto, o caminho faz-se de pequenos gestos, de estudo e investigação. “A certeza de conhecer e de possuir “a solução” é o caminho mais curto para a ignorância. E não se pode acabar com isto?” questiona o autor. O seu livro, pelos efeitos demonstrativos, é um bom contributo para esse objectivo.
artigo publicado no Diário Económico.
Mas, com o regresso da educação à agenda mediática, chegaram também muitas das “evidências” em que se baseia o discurso sobre o tema. Se há terreno onde imperam os “achismos”, opiniões baseadas em pseudo-evidências, sem sustentação empírica e cuja veracidade assenta na sua repetição ao longo dos tempos, esse é o da educação. Era, por isso, importante que, mais do que repetirmos debates fundados em dicotomias improdutivas, fossemos capazes de cortar com o senso comum que contamina o campo da educação.
É este, em parte, o propósito do livro “Evidentemente - histórias da educação” de António Nóvoa, publicado pelas Edições ASA (2005): superar as oposições e as banalidades “irritantemente óbvias, mas sempre repetidas como se fossem novidade” em que assentam as discussões sobre as coisas da educação. O exercício é, a um tempo, simples e sofisticado. Através de 50 textos, cada um de uma página, ilustrados com imagens, procura-se de modo assumidamente incompleto traçar a genealogia de muitas das discussões sobre educação em Portugal.
Lidas as páginas, o que perpassa é a ideia de que, ao longo de dois séculos, se discutiu invariavelmente da mesma maneira, como se fosse impossível acumular conhecimento e valorizar as realizações que, de facto, ocorreram. Como escreve Nóvoa, “quando se trata de educação, nenhum político tem dúvidas, nenhum comentador se engana, nenhum português hesita. Palavras gastas. Inúteis. Banalidades. Mentiras. O que é evidente, mente. Evidentemente.” Dois exemplos paradigmáticos: a ignorância dos alunos e o atraso educacional.
Sendo difícil situar com exactidão o período em que se generalizou a ideia de que os alunos estão cada vez mais mal preparados, a verdade é que se trata de um discurso há muito presente. Se os alunos são cada vez mais ignorantes, tal deveria acontecer por relação a um momento anterior, em que supostamente estariam mais bem preparados. Acontece que, desde finais do século XIX, se diz que os alunos sabem sempre menos. O que hoje se ouve frequentemente, já se ouvia no passado. Por exemplo, em 1947, João Anglin escrevia, “quem anda envolvido nas lides do ensino sabe a dose de benevolência que é preciso empregar para não excluir maior número de alunos, dado o grau de preguiça e de indigência mental a que se chegou”. No livro, as referências similares são muitas, dando corpo a um discurso passa-culpas que persiste.
Desde meados do século XIX que o atraso de Portugal surge directamente ligado ao retrato educativo do país. Vamo-nos “descobrindo, periodicamente, um país atrasado. Fixamos metas imaginando os outros países parados. Por isso, quando as cumprimos, constatamos perturbados que a distância que nos separa da ‘civilização’ é cada vez maior”. Hoje, estamos tão pessimistas como sempre, basta lembrar o que escreveu Agostinho de Campos, em 1933: “de quando em quando, ouve-se por aí, muito a sério e em tom de profundo convencimento: precisamos de uma reforma geral do ensino... melhor seria dizer, logo de uma vez: faz-nos falta um milagre da nossa senhora de Fátima.”
É por isso que, como parece sugerir Nóvoa, o caminho da mudança dever-se-ia basear mais na reforma do que já existe do que na invenção do que poderá ser. E este movimento deveria assentar menos no voluntarismo político – que insiste em impor reformas legislativas a partir do centro – e mais na dotação das escolas com capacidades autónomas de inovação e de desenvolvimento. Na educação, como em tudo o resto, o caminho faz-se de pequenos gestos, de estudo e investigação. “A certeza de conhecer e de possuir “a solução” é o caminho mais curto para a ignorância. E não se pode acabar com isto?” questiona o autor. O seu livro, pelos efeitos demonstrativos, é um bom contributo para esse objectivo.
artigo publicado no Diário Económico.
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