O PREC II
Não é tarefa fácil, mas se procurarmos
fazer um exercício de exegese da confusão que grassa no discurso de Passos
Coelho, acabaremos por intuir algum significado no que nos é dito.
A preocupação com a linguagem na
política não é novidade. George Orwell, num ensaio de 1946, “politics and the English language”, sublinhava que perante a decadência da civilização, a
linguagem teria inevitavelmente de partilhar o colapso geral. Mais,
acrescentava que sendo a decadência da linguagem causada por factores
económicos e políticos, com o tempo, aquela tornava-se, ela própria, causa de
degradação. “A linguagem torna-se feia e imprecisa porque as nossas ideias são
idiotas, mas a natureza negligente da nossa linguagem faz com que seja mais
fácil ter ideias idiotas”, acrescentava Orwell.
Talvez seja adequado tomar a forma como
o primeiro-ministro se expressa como um sinal mais vasto de colapso político e
social. O que, sendo, em si, relevante, não nos deve impedir de olhar para o
que nos é dito.
Se considerarmos que a linguagem
importa, a forma como o termo “refundação” emergiu no debate público português
é, politicamente, muito relevante. Não é indiferente que se inicie um debate
sobre as funções do Estado, sobre o conjunto das políticas públicas, com uma
expressão que remete para um repensar das fundações e que sugere ruptura com o
passado. De facto, refundação é, do ponto de vista etimológico, um termo que
nos aproxima mais de “revolução” do que de “reforma”.
Esta linguagem radical só pode ter
consequências. Não apenas, como aliás já sabemos, dificulta um diálogo sério no
espaço público (é o que se está a passar com o não-debate em curso), como,
ainda mais grave, esquece tudo o que uma estratégia reformista eficaz nas
políticas públicas aconselha.
Porventura, os principais problemas das
políticas públicas em Portugal não resultam de opções programáticas erradas
(estas variam consoante a visão política dos governos), mas, antes, de um
descuidar sistemático de princípios em que todas as políticas devem assentar:
processos de formação baseados no conhecimento factual da realidade; decisão
negociada e procura de pontos de convergência; e finalmente avaliação do
impacto, procurando saber o que correu bem e deve ser potenciado, e o que
correu mal, e deve ser repensado. No fundo, Portugal precisa de melhor a sua
capacidade reformadora, em lugar de enveredar repetidamente por rupturas
radicais com as políticas anteriores.
A refundação é uma versão extrema do
que fizemos de errado ao longo das últimas décadas e o caminho que tem trilhado
no espaço público é mais uma prova de que a crise é terreno fértil para que os
vários radicalismos medrem. Desde o radicalismo académico e que opera, desde os
gabinetes ministeriais, através de folhas de cálculo até ao que ataca a
democracia apedrejando o Parlamento. Quando precisávamos de uma linguagem que
nos oferecesse moderação e que se revelasse capaz de consolidar práticas
reformistas, somos irresistivelmente empurrados para um PREC II.
publicado no Expresso de 8 de Dezembro
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