A arte de não saber durar
O maior
enigma da política portuguesa do século XX é a longevidade do salazarismo. Como
foi possível um regime autoritário durar tanto tempo enquanto quase toda a
Europa ocidental abraçava a democracia? Naturalmente que um aparelho repressivo
poderoso foi importante. Mas não explica tudo. Ao longo dos tempos, Fernando
Rosas tem respondido a este puzzle de
modo convincente: para o historiador, “a arte de saber durar” de Salazar
assentou numa articulação singular de interesses económicos e sociais, alguns
deles contraditórios, através de um poder político muito personalizado, com
graus importantes de autonomia em relação às várias partes.
É evidente que, à partida, uma
comparação entre uma ditadura e um governo democrático é absurda. Contudo, o
exemplo serve como ilustração extrema de que na política é sempre necessária
racionalidade estratégica que ajude a formar uma base social de apoio. Até num
regime autoritário, no qual a legitimidade democrática não releva, os Governos têm
de articular interesses e fazê-lo através de um discurso político partilhado.
Só assim um regime consegue durar.
Estamos
confrontados com um enigma do mesmo tipo, ainda que com contornos distintos. Um
ano e meio depois, só nos podemos questionar: como é possível termos um
primeiro-ministro tão exímio na arte de não saber durar?
O contexto era muito adverso, com a
necessidade de fazer um ajustamento exigente e uma envolvente externa hostil.
Contudo, Passos Coelho tinha condições políticas favoráveis: uma maioria
absoluta no parlamento, assente numa rejeição profunda do Governo anterior, e
uma disponibilidade social alargada para enfrentar sacrifícios e, não menos
importante, uma troika que podia ser responsabilizada
instrumentalmente pela austeridade. Surpreende por isso que Passos Coelho tenha
sido tão célere a delapidar o seu capital político. De tal modo que é hoje
primeiro-ministro de um Governo que, de facto, já acabou: não tem iniciativa, não
tem uma linha política perceptível e falhou as metas que definiu, perdendo
credibilidade. Acima de tudo, não se chega a perceber com que grupos sociais se
propõe governar e qual o objectivo estratégico que prossegue.
Hoje, perante a sucessão de
declarações que variam entre o contraditório, o incompreensível e o mau
português, tem-se tornado difícil analisar a ação de Passos Coelho. É que uma
coisa é fazermos uma avaliação das propostas do Governo com base no seu
conteúdo, outra, bem distinta, é tentar perceber até que ponto as decisões
obedecem a critérios de racionalidade e visam criar uma coligação social de
apoio. Chegámos, hoje, a um ponto tal que, sendo ainda possível encontrar quem
defenda a estratégia que, com dificuldade, se vislumbra no Governo, tornou-se virtualmente
impossível encontrar alguém que reconheça capacidades a Passos Coelho. No
fundo, parafraseando António José Teixeira em comentário na SIC-N esta semana:
“temos dificuldade em olhar para Passos Coelho como um primeiro-ministro”.
publicado no Expresso de 1 de Dezembro
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