quinta-feira, dezembro 06, 2012

A arte de não saber durar


O maior enigma da política portuguesa do século XX é a longevidade do salazarismo. Como foi possível um regime autoritário durar tanto tempo enquanto quase toda a Europa ocidental abraçava a democracia? Naturalmente que um aparelho repressivo poderoso foi importante. Mas não explica tudo. Ao longo dos tempos, Fernando Rosas tem respondido a este puzzle de modo convincente: para o historiador, “a arte de saber durar” de Salazar assentou numa articulação singular de interesses económicos e sociais, alguns deles contraditórios, através de um poder político muito personalizado, com graus importantes de autonomia em relação às várias partes.
            É evidente que, à partida, uma comparação entre uma ditadura e um governo democrático é absurda. Contudo, o exemplo serve como ilustração extrema de que na política é sempre necessária racionalidade estratégica que ajude a formar uma base social de apoio. Até num regime autoritário, no qual a legitimidade democrática não releva, os Governos têm de articular interesses e fazê-lo através de um discurso político partilhado. Só assim um regime consegue durar.
            Estamos confrontados com um enigma do mesmo tipo, ainda que com contornos distintos. Um ano e meio depois, só nos podemos questionar: como é possível termos um primeiro-ministro tão exímio na arte de não saber durar?
            O contexto era muito adverso, com a necessidade de fazer um ajustamento exigente e uma envolvente externa hostil. Contudo, Passos Coelho tinha condições políticas favoráveis: uma maioria absoluta no parlamento, assente numa rejeição profunda do Governo anterior, e uma disponibilidade social alargada para enfrentar sacrifícios e, não menos importante, uma troika que podia ser responsabilizada instrumentalmente pela austeridade. Surpreende por isso que Passos Coelho tenha sido tão célere a delapidar o seu capital político. De tal modo que é hoje primeiro-ministro de um Governo que, de facto, já acabou: não tem iniciativa, não tem uma linha política perceptível e falhou as metas que definiu, perdendo credibilidade. Acima de tudo, não se chega a perceber com que grupos sociais se propõe governar e qual o objectivo estratégico que prossegue.
            Hoje, perante a sucessão de declarações que variam entre o contraditório, o incompreensível e o mau português, tem-se tornado difícil analisar a ação de Passos Coelho. É que uma coisa é fazermos uma avaliação das propostas do Governo com base no seu conteúdo, outra, bem distinta, é tentar perceber até que ponto as decisões obedecem a critérios de racionalidade e visam criar uma coligação social de apoio. Chegámos, hoje, a um ponto tal que, sendo ainda possível encontrar quem defenda a estratégia que, com dificuldade, se vislumbra no Governo, tornou-se virtualmente impossível encontrar alguém que reconheça capacidades a Passos Coelho. No fundo, parafraseando António José Teixeira em comentário na SIC-N esta semana: “temos dificuldade em olhar para Passos Coelho como um primeiro-ministro”. 

publicado no Expresso de 1 de Dezembro